Minha desilusão na Rússia

Minha desilusão na Rússia Emma goldman


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Minha desilusão na Rússia


Volume - 2




Os anais da literatura relatam livros censurados, capítulos inteiramente eliminados ou alterados, levando-os a total descaracterização. Mas acredito ser caso raro um trabalho ser publicado com mais de um terço eliminado e sem a ciência de seus revisores. Isso ocorreu com meu trabalho sobre a Rússia.

A história dessa experiência dolorosa poderia muito bem constituir outro capítulo, mas, por enquanto, se faz suficiente dar os fatos do caso.

Meu manuscrito foi enviado ao seu primeiro comprador em duas partes em momentos diferentes. Posteriormente, a editora Doubleday, Page & Co. comprou os direitos do meu trabalho, mas quando recebi as primeiras cópias impressas descobri, para meu descontentamento, que não apenas meu título original foi alterado de “Meus dois anos na Rússia” para “Minha desilusão na Rússia”, mas também os últimos doze capítulos estavam completamente ausentes, incluindo o posfácio, a parte, ao menos para mim, mais vital.

Disto seguiu-se uma troca de telegramas e correspondências, que gradualmente evidenciou que a Doubleday, Page & Co. havia conseguido meus manuscritos com uma agência literária de boa fé e que estava completo. Por alguma razão, a segunda parte do trabalho ou não chegou ao seu comprador original ou foi perdida em seu escritório. De qualquer forma, o livro foi publicado sem que ninguém suspeitasse de sua incompletude.

O presente volume contém os capítulos ausentes da primeira edição e aprecio profundamente a devoção de meus amigos que possibilitaram seu resgate – para minha justiça e de meus leitores.

As aventuras dos manuscritos tem seu lado cômico que lançam luz para a peculiaridade de seus críticos. De quase uma centena de críticos americanos, apenas dois perceberam sua incompletude. E, aliás, um deles não é um crítico “regular”, mas um bibliotecário. Assim, refletimos sobre a perspicácia ou o rigor dos profissionais.

Foi uma perda de tempo considerar a “crítica” daqueles que sequer leram o livro ou que não tiveram a capacidade de perceber que estava inacabado. De todas as alegadas “análises”, apenas duas merecem consideração, escritas por homens sérios e qualificados: as de Henry Alsberg e H. L. Mencken.

O Sr. Alsberg acredita que o título atual do livro é mais adequado ao seu conteúdo do que aquele escolhido por mim. Minha desilusão, ele afirma, não é apenas com os bolcheviques, mas com a própria revolução. Procurando sustentar sua afirmação, ele cita a observação de Bukharin de que “uma revolução não pode ser realizada sem terror, desorganização e até destruição arbitrária, tanto quanto é impossível fazer uma omelete sem quebrar os ovos”. Mas parece não ter ocorrido ao Sr. Alsberg que, embora a quebra dos ovos seja necessária, nenhuma omelete pode ser feita se a gema for jogada fora. E é precisamente isso que o Partido Comunista fez na Revolução Russa. No lugar da gema, eles colocaram o bolchevismo, mais especificamente o leninismo, obtendo o resultado mostrado no meu livro – um resultado que gradualmente está sendo percebido como um fracasso total pelo mundo em geral.

O Sr. Alsberg acredita também que não foi “a necessidade sombria de preservar a revolução, mas os restos da civilização que obrigaram os bolcheviques a utilizar todas as armas dispo- níveis: o terror, a Tcheka, a supressão da liberdade de expressão e imprensa, a censura, o recrutamento militar compulsório, o trabalho forçado, a requisição de cultivos de camponeses, até o suborno e a corrupção”. O Sr. Alsberg evidentemente concorda comigo que os comunistas empregaram todos esses métodos; e, como ele próprio afirma, “os ‘meios’ determinam grande parte dos ‘fins’” – uma conclusão cuja prova e demonstração estão contidas no meu livro. O único erro neste ponto de vista, no entanto – e o mais vital – é a suposição de que os bolcheviques foram obrigados a recorrer aos métodos referidos para “preservar os vestígios da civilização”. Tal perspectiva é baseada em um equívoco total da filosofia e prática do bolchevismo. Nada pode estar mais longe do desejo ou intenção do leninismo do que a “preservação dos restos da civilização”. Se o Sr. Alsberg dissesse, em vez disso, “a preservação da ditadura comunista, do absolutismo político do partido”, ele teria se aproximado da verdade e não teríamos de discutir o assunto. Não podemos ignorar que os bolcheviques continuam a empregar hoje exatamente os mesmos métodos empregados, como o Sr. Alsberg chama, nos “momentos difíceis, em 1919, 1920 e 1921”.

Estamos em 1924. As frentes militares já foram liquidadas há muito tempo; a contrarrevolução interna foi suprimida; a antiga burguesia eliminada; os “momentos de necessidades sombrias” fazem parte do passado. Aliás, a Rússia está sendo politicamente reconhecida por vários governos da Europa e Ásia e os bolcheviques estão convidando o capital internacional a entrar no país, cuja riqueza natural, como assegura Tchicherin aos capitalistas mundiais, está “esperando para ser explorada”. O “momento da necessidade sombria” desapareceu, mas o terror, a Tcheka, a supressão da liberdade de expressão e da imprensa, e todos os outros métodos comunistas enumerados pelo Sr. Alsberg permanecem em prática. Na verdade, estão sendo aplicados de forma ainda mais brutal e bárbara desde a morte de Lenin. É para “preservar os vestígios da civilização”, como afirma o Sr. Alsberg, ou para fortalecer a enfraquecida ditadura do partido?

O Sr. Alsberg me acusou de acreditar que “se os russos tivessem feito a revolução à la Bakunin em vez de à la Marx”, o resultado seria diferente e mais satisfatório. Assumo a culpa da acusação. Na verdade, não apenas acredito; tenho certeza disso. A Revolução Russa – mais corretamente, os métodos bolcheviques – demonstraram conclusivamente como uma revolução não deve ser feita. O experimento russo provou a fatalidade de um partido político usurpar as funções do povo revolucionário, de um Estado onipotente que busca impor sua vontade ao país, de uma ditadura tentando “organizar” a nova vida. Mas não preciso repetir aqui as reflexões apresentadas em meu capítulo de conclusão. Infelizmente, elas não apareceram na primeira edição do meu trabalho. Caso contrário, o Sr. Alsberg talvez teria escrito de outra maneira.

O Sr. Mencken em sua análise me aponta como uma “testemunha preconceituosa”, porque eu – uma anarquista – oponho-me ao governo, seja qual for sua forma. No entanto, toda primeira parte do meu livro nega qualquer suposição de preconceito de minha parte. Defendi os bolcheviques ainda na América, e durante longos meses na Rússia procurei todas as oportunidades para cooperar com eles e ajudar na grande tarefa da construção civil revolucionária. Embora anarquista e antiestatal, não fui à Rússia esperando encontrar meu ideal. Eu vi nos bolcheviques o símbolo da revolução e estava ansiosa para trabalhar com eles, apesar de nossas diferenças. No entanto, se a falta de distanciamento da realidade significa que não se pode julgar de forma justa, o Sr. Mencken está certo. Não se pode viver dois anos em meio ao terror comunista, de um regime que implica a escravização de todo o povo, a aniquilação dos valores humanos e revolucionários mais fundamentais, de corrupção e má gestão, e ainda permanecer distante ou “imparcial”, conforme colocado por ele. Duvido que o Sr. Mencken, embora não seja anarquista, o fizesse. Poderia, sendo ele um humano?

Concluindo, a presente publicação dos capítulos que faltam da primeira edição, vem em um período muito significativo na vida da Rússia. Quando a N.E.P., a nova política econômica de Lenin, foi introduzida, surgiu a esperança de dias melhores, da abolição gradual das políticas de terror e perseguição. A ditadura comunista pareceu inclinada a afrouxar o estrangulamento dos pensamentos e da vida das pessoas. Mas a esperança teve vida curta. Desde a morte de Lenin, os bolcheviques voltaram ao terror dos piores dias de seu regime. O despotismo, temendo por seu poder, procura segurança no derramamento de sangue. Meu livro é mais oportuno hoje do que em 1922.

Quando revelei a primeira série de meus artigos sobre a Rússia em 1922, e mais tarde, quando meu livro foi publicado, fui amargamente atacada e denunciada pelos radicais americanos de quase todos os campos. Mas estava confiante de que chegaria o momento em que a máscara do falso rosto do bolchevismo seria arrancada e a grande ilusão seria exposta. Este momento chegou antes do que eu esperava. Na maioria das terras mais esclarecidas – França, Inglaterra, Alemanha, os países escandinavos e latinos, mesmo na América –, o nevoeiro da fé cega está gradualmente se dissipando. O caráter reacionário do regime bolchevique está sendo percebido pelas massas e seu terrorismo e perseguição da opinião não-comunista, condenados. A tortura de presos políticos nas prisões russas, nos campos de concentração do norte congelado e no exílio da Sibéria despertam a consciência dos indivíduos mais progressistas do mundo. Em quase todos os países, sociedades de defesa e ajuda aos presos políticos na Rússia se formaram, com o objetivo de assegurar sua libertação e o estabelecimento de liberdade de opinião e expressão na Rússia.

Se o meu trabalho contribuir aos esforços de lançar luz sobre a situação real na Rússia e despertar o mundo para o verdadeiro caráter do bolchevismo e a existência da ditadura – seja fascista ou comunista – suportarei com tranquilidade conflitos e deturpação de inimigos ou amigos. E não me arrependerei das dores e angústias causadas por essa obra, que agora, depois de muitas vicissitudes, está finalmente impressa.

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