Notas sobre a melodia das coisas

Notas sobre a melodia das coisas Rainer Maria Rilke


Compartilhe


Notas sobre a melodia das coisas





Notas sobre a melodia das coisas.
Rainer Marie Rilke
Tradução de Ana Falcão Bastos

Nós estamos mesmo no princípio, vê tu.
Como antes de tudo.
Com mil e um sonhos atrás de nós e sem acto.
Não consigo imaginar conhecimento mais ditoso do que este:
que temos de tornar-nos iniciadores.
Alguém que escreve a primeira palavra a seguir a um travessão secular.

Ocorre-me isto: nesta observação:
que nós continuamos sempre a pintar as pessoas sobre um fundo dourado, como os Primitivos italianos. Elas erguem-se diante de algo indeterminado. Às vezes dourado, às vezes também cinzento. À luz, por vezes, e freqüentemente com uma escuridão insondável atrás delas.
Isso compreende-se. Para reconhecer as pessoas, foi preciso isolá-las. Mas depois de uma longa experiência é sensato pôr de novo em relação as contemplações isoladas e acompanhar os seus gestos mais amplos com um olhar amadurecido.
Compara uma pintura sobre fundo dourado do Trecento com uma das inúmeras composições mais tardias dos antigos mestres italianos, onde as figuras se reúnem numa Santa Conversazione diante da paisagem luminosa no ar límpido da Umbria. O fundo dourado isola cada uma dessas figuras, a paisagem resplandece atrás delas, como uma alma comum, da qual extraem o seu sorriso e o seu amor.
Pensa, então, na própria vida. Recorda que as pessoas têm gestos abundantes e empolados e palavras incrivelmente gradiosas. Fossem elas, nem que por um instante, tão serenas e ricas como os belos santos de Marco Basaiti, deverias também encontrar atrás delas a paisagem que lhes é comum.
E há também momentos em que, diante de ti, uma pessoa, calma e límpida, se destaca contra o fundo da sua magnificência. Estes são raros instantes festivos, que tu nunca esqueces. A partir daí, amas esta pessoa. Isso significa que te empenhas a copiar com as tuas mãos ternas os contornos da tua personalidade, tal como a conhecestes naquela hora.
A arte faz o mesmo. Ela é o amor mais vasto e mais desmedido. Ela é o amor de Deus. Não pode deter-se no indivíduo, que é apenas o portal da vida. Ela tem de passar através dele. Não pode ficar cansada. Para se realizar plenamente tem de actuar onde todos – são um. E quando faz sua dádiva a este um, todos são cumulados de uma riqueza ilimitada.
Como a arte se encontra longe disto pode ver-se no palco, onde ela diz ou pretende dizer como considera a vida, não o indivíduo no seu repouso ideal, mas o movimento e o relacionamento de muitos. Daqui resulta que ela simplesmente coloca as pessoas lado a lado, como faziam no Trecento, e deixa que sejam elas a criar laços entre si sobre o cinzento ou o dourado do fundo.
E por isso, eis também o que se passa. Elas tentam alcançar-se com palavras e gestos. Quase delocam os braços, pois os gestos são demasiados limitados. Fazem esforços infinitos para lançar as sílabas umas às outras e, ao mesmo tempo, são péssimas jogadoras, que não sabem apanhar a bola. Assim passam o tempo, a curvar-se e a procurar – exatamente como na vida.
E a arte mais não fez do que mostrar-nos a confusão na qual nos encontramos a maior parte do tempo. Ela angustiou-nos em vez de nos tornar calmos e silenciosos. Provou que cada um de nós vive numa ilha; só que as ilhas não são suficientemente distantes para permanecermos solitários e tranquilos. Uma pessoa pode incomodar outra, assustá-la ou persegui-la com lanças - mas ninguém pode ajudar ninguém.

Para passar de uma ilha para a outra só há uma possibilidade: saltos perigosos, nos quais se arrisca mais do que os pés. Daí resulta em terno vaivém de pulos, acompanhado de acasos e de situações ridículas, pois acontece duas pessoas saltarem uma para a outra, ao mesmo tempo, de tal modo que só se encontram no ar e, depois desta troca penosa, continuam tão longe - uma da outra - como antes.

Isto não é de modo nenhum surpreendente, pois, na realidade, as pontes conduzem a outras, que se transpõem com um belo passo solene, não em nós, mas atrás de nós, exactamente como nas paisagens de Fra Bartolomeo ou Leonardo da Vinci. E é assim que a vida se aguça, convergindo nas diferentes personalidades. Mas, de pico para pico, a vereda segue pelos vales mais amplos.

Quando duas ou três pessoas se reúnem, não é por isso que ficam juntas. Elas são como títeres cujos fios se encontram em diferentes mãos. Só quando uma mão os manipula a todos, eles ficam submetidos a uma acção comum que os obriga a fazer vénias ou a agredirem-se. E também as forças das pessoas se encontram ali, onde os seus fios terminam numa mão soberana que os segura.

Elas só se encontram na hora comum, na tempestade comum, naquela sala onde se reúnem. Só começam a entrar em contacto umas com as outras quando atrás delas se ergue um fundo. Têm de poder referir-se a uma pátria una. Têm de mostrar ao mesmo tempo umas às outras as credenciais que têm em sua posse e que encerram todas elas o sentido e o selo do mesmo príncipe.

Seja o que rodeia o canto de um candeeiro, a voz da tempestade, a respiração do entardecer ou o gemido do mar – atrás de ti está sempre vigilante uma vasta melodia, tecida de milhares de vozes, na qual o teu solo só tem lugar aqui e ali. Saber quando deves fazer a tua entrada, eis o segredo da tua solidão: tal como a arte do verdadeiro relacionamento é: do alto das palavras deixar-se cair na melodia uma e comum.

Se os santos de Marco Basaiti tivessem algo a confiar uns aos outros para além da sua bem-aventurada proximidade, eles não estenderiam as suas mãos finas e suaves à frente do quadro no qual habitam. Recuariam, tornar-se-iam pequeninos e, pelas pontes minúsculas, iriam ao encontro uns dos outros no fundo do campo que escuta.
Nós, à frente, somos exatamente assim. Saudades abençoadas. A nossa realização plena tem lugar ao longe, nos fundos resplandecentes. Aí encontram-se o movimento e a vontade. Aí desenrolam-se as histórias, das quais somos os títulos obscuros. Aí tem lugar as nossas uniões e as nossas despedidas, o consolo e o pesar. Aí estamos nós, enquanto andamos cá e lá no primeiro plano.
Lembra-te de pessoas que encontras-te reunidas, sem que tenham tido uma hora em comum. Por exemplo, parentes que se encontram junto ao leito de morte de um ente a quem verdadeiramente amaram. Aí, um mergulha nesta, outro naquela recordação profunda. As suas palavras cruzam-se, sem que eles nada saibam uns dos outros. As suas mãos desencontram-se na primeira perturbação. – Até a dor alastrar atrás deles. Sentam-se, inclinam a fronte e calam-se. Sobre eles há como que um rumorejar de floresta. E estão tão próximos uns dos outros como nunca haviam estado até então.
Noutros casos, se não houver uma dor mais profunda, que torne as pessoas igualmente silenciosas, uma ouve mais, a outra menos, da poderosa melodia do fundo. Muitas já não a ouvem de todo. São como árvores, que esqueceram as suas raízes e agora julgam que o rumorejar dos ramos é a sua força e a sua vida. Muitas não têm tempo para ouvir. Não toleram nenhuma hora em seu redor. São pobres apátridas, que perderam o sentido da existência. Batem nas teclas dos dias e tocam sempre a mesma nota monótona e desesperada.
Se queremos ser iniciados da vida, devemos reflectir nas coisas sob duas perspectivas:
Em primeiro lugar, a grande melodia, na qual actuam em conjunto coisas e perfumes, sensações e passados, crepúsculos e nostalgias, - e depois: as vozes individuais, que preenchem e completam a plenitude deste coro.
E, para criar uma obra de arte, ou seja, uma imagem de vida mais profunda, da existência possível, não apenas hoje, mas em todos os tempos, será necessário pôr numa relação justa e equilibrar ambas as vozes, a de uma hora dessa mesma existência e a de um grupo de pessoas dentro dela.
Para alcançar este objectivo, é preciso ter reconhecido os dois elementos da melodia da vida nas suas formas primitivas; é preciso ter extraído do tumulto ruidoso do mar a cadência do bater das vagas e ter destrinçado do emaranhado da conversa quotidiana a linha viva que transporta as outras. É preciso dispor lado a lado as cores puras para reconhecer os seus contrastes e as suas afinidades. É preciso ter esquecido o muito em nome do que é importante.
Duas pessoas em igual medida silenciosas não têm de falar da melodia das horas. Esta é, em si e para si, o seu elemento comum. Ergue-se entre elas como um altar ardente, e elas alimentam a chama sagrada, temerosamente, com as suas raras sílabas.
Se eu retiro estas duas pessoas da sua existência desprovida de desígnio e as coloco no palco, faço-o manifestamente para mostrar dois amantes e para explicar porque são eles ditosos. Mas em cena o altar é invisível e ninguém sabe explicar os estranhos gestos dos sacrificadores.
Aqui só há dois caminhos: ou as pessoas têm de se erguer e, com muitas palavras e com gestos confusos, procurar dizer o que viviam antes. Ou: Não modifico nada no seu fazer profundo e acrescento eu mesmo estas palavras: Aqui está um altar sobre o qual arde uma chama sagrada. Podem observar o seu brilho nos rostos dessas duas pessoas.
A última solução parece-me a única artística. Nada se perde do essencial; nenhuma confusão dos elementos simples perturba a sucessão de acontecimentos quando eu descrevo o altar que une os dois solitários, de tal modo que todos o vêem e acreditam na sua presença. Muito mais tarde, espontaneamente, será dado aos expectadores verem a coluna ardente, e eu não terei de acrescentar nada de esclarecedor. Muito mais tarde.
Mas isto do altar é apenas uma analogia, ainda por cima muito aproximativa. Trata-se de exprimir em cena a hora comum em que as pessoas vêm à fala. Esta canção, que na vida permanece confiada às mil vozes do dia ou da noite, ao sussurro da floresta ou ao tiquetaque do relógio e às suas badaladas hesitantes, este vasto coro do fundo, que marca a cadência e o tom das nossas palavras, por agora não se faz entender pelos mesmos meios no palco.
Pois aquilo a que se chama “atmosfera” e que, em peças mais recentes, também se tem vindo a impor parcialmente, não passa de uma primeira tentativa imperfeita de deixar transparecer a paisagem atrás das pessoas, das palavras e dos gestos, de que a maioria não se aperceberá de todo e que, devido à sua quase inaudível intimidade, não pode ser de modo nenhum apercebida por todos. Uma amplificação técnica dos diferentes ruídos ou iluminações produz um efeito ridículo, porque de milhares de vozes uma única se eleva, de tal modo que toda a acção fica suspensa deste ponto único.
Só é feita justiça à vasta melodia de fundo se a deixarmos manifestar-se em toda a sua amplitude, o que, por agora, parece impraticável, devido tanto aos meios dos nossos palcos, como à maneira de pensar da multidão desconfiada a esse respeito. – Só é possível conseguir o equilíbrio através de uma estilização rigorosa. Com efeito, quando se executa a melodia do infinito batendo nas mesmas teclas sobre as quais estão poisadas as mãos da acção, isso significa que o grandioso, o indizível, desce para se harmonizar com as palavras.
Isto não é mais do que a introdução de um coro que se desenrola serenamente atrás dos diálogos luminosos e cintilantes. O silêncio, actuando continuamente em toda a sua amplitude e significado, faz as palavras apresentarem-se como o seu prolongamento natural, podendo, por esse motivo, alcançar-se uma representação global do canto da vida, que, de outro modo, parecia irrealizável, devido à impossibilidade de utilizar, no palco, perfumes e sensações obscuras.
Quero chamar a atenção para um pequeno exemplo:
-Entardecer. Uma pequena sala. Ao meio, sentadas à mesa debaixo do candeeiro, encontram-se duas crianças, uma diante da outra, debruçadas sobre os seus livros, contra vontade. Estão ambas longe – longe. Os livros ocultam a sua evasão. De quando em quando interpelam-se, para não se perderem na vasta floresta dos seus sonhos. Na sala exígua, vivem destinos multicores e fantásticos. Combatem e saem vitoriosas. Regressam a casa e casam. Ensinam os filhos a ser heróis. Chegam mesmo a morrer.
Tenho idéias tão singulares, que tomo isto por acção!
Mas o que é esta cena sem o canto do luminoso candeeiro suspenso antiquado, sem a respiração e o gemido dos móveis, sem a tempestade ao redor da casa. Sem todo este fundo sombrio através do qual as crianças puxam os fios de suas fábulas. Como elas teriam sonhos diferentes no jardim, à beira-mar, no terraço de um palácio. Não é a mesma coisa bordar-se em seda ou em lã. É preciso saber que elas repetem, inseguras, as duas linhas toscas do seu padrão labiríntico na tela amarela deste entardecer na sala.
Só penso então em deixar soar toda a melodia tal como os rapazinhos a ouvem. Voz silenciosa, ela tem de pairar sobre a cena e, a um sinal invisível, as tênues vozes infantis fazem-se ouvir e vogam para longe, enquanto o vasto rio continua a rugir através da sala exígua do entardecer, de infinito para infinito.
Cenas semelhantes, conheço eu muitas, e mais amplas. Consoante a estilização é mais expressiva ou, melhor dizendo, mais multifacetada, ou mais cuidadosa a alusão a ela, o coro encontra o seu lugar na própria cena e funciona então também através da sua presença vigilante, ou a sua participação limita-se à voz que se eleva, vasta e impessoal, da fermentação da hora comum. Em ambos os casos, reside também nela, como no coro antigo, a sabedoria mais sábia; não porque ela julga o desenrolar da acção, mas por ser a base da qual se eleva aquele canto mais suave e a cujo seio ele regressa, finalmente, mais belo.
Considero neste caso a representação estilizada, e também irrealista, apenas como uma transição; pois no palco será sempre mais bem acolhida a arte que se assemelha à vida e que, nesse sentido exterior, “é verdadeira”. Mas é precisamente este o caminho que conduz a uma verdade interior, que se aprofunda a si mesma: reconhecer e utilizar os elementos primitivos. Depois de uma experiência séria, aprender-se-á a empregar de maneira mais livre e mais autônoma os motivos fundamentais captados e, deste modo, ficar-se-á de novo mais próximo da real realidade temporal. Mas este não será o mesmo que antes.
Estes esforços parecem-me necessários, pois, de outro modo, o conhecimento dos sentimentos mais subtis, que se adquire com um trabalho longo e sério, perder-se-ia para sempre no ruído do palco. E isso seria uma pena. Quando isso se faz de uma forma imparcial e discreta, é possível anunciar a nova vida a partir do palco, ou seja, comunicá-la igualmente àqueles que não aprendem os seus gestos movidos pelo seu próprio ímpeto e pelas suas próprias forças. A cena não deve convertê-los. Mas pelo menos devem ficar a saber: isto existe na nossa época, mesmo ao nosso lado. O que já é muito bom.
Pois tem quase o significado de uma religião compreender o seguinte: mal se encontra a melodia do fundo, deixamos de nos sentir hesitantes nas palavras e confusos nas decisões. Há uma segurança despreocupada na simples convicção de fazer parte de uma melodia e também de ter direito a um determinado dever numa obra vasta, na qual o mais insignificante tem o mesmo valor do que o mais importante. Não ser supérfluo é a condição primordial para o desenvolvimento consciente e tranqüilo.
Toda a discórdia e todos os erros provêem do facto de as pessoas procurarem o que lhes é comum em si, e não nas coisas atrás de si, na luz, na paisagem do principio e na morte. Deste modo, perdem-se e nada ganham em troca. Misturam-se já que não podem unir-se. Amparam-se mutuamente sem conseguirem firmar o passo, pois são ambas vacilantes e fracas; e, nesta vontade de se apoiarem reciprocamente, esgotam todas as suas forças, de modo que, no exterior, nem é perceptível o embate de uma vaga.
Mas tudo o que é comum pressupõe uma série de seres distintos e isolados. Antes deles, havia apenas um todo desprovido de qualquer relação e, por isso, confinado a si mesmo. Este não era pobre nem rico. No instante em que diversas das suas partes se distanciaram da unidade materna, ele entra em confronto com elas; pois elas desenvolvem-se afastando-se dele. Mas ele não as larga. Embora a raiz ignore os frutos, é ela que os alimenta.
E nos somos como frutos. Estamos suspensos lá no alto, em ramos singularmente emaranhados, fustigados por muitos ventos. O que possuímos é a nossa maturidade, doçura e beleza. Mas a força que produz tudo isso corre em um único tronco a partir de uma raiz que se tornou vasta e se estende por mundos em todos nós. E, se quisermos dar testemunho da sua força, cada um de nós tem de a utilizar no sentido mais solitário. Quanto mais solitário, mais solene, pungente e poderosa é a sua comunalidade.
E são precisamente os mais solitários que têm a maior participação na comunidade. Afirmei anteriormente que um individuo capta mais, outro menos, da vasta melodia da vida; por conseguinte, a este último cabe uma tarefa menor ou mais insignificante na orquestra. Aquele que captasse toda a melodia, seria em simultâneo o mais solitário e o mais inserido na comunidade. Isto porque ouviria o que ninguém ouve e porque só ele compreende, na sua plenitude, o que os outros, por muito que se esforcem, só distinguem de uma forma obscura e incompleta.

(Estas “Notas sobre a melodia das coisas” foram escritas em 1898, tinha Rilke vinte e três anos. No ano anterior tinha estudado filosofia e conhecido Lou Salomé.)

Poemas, poesias

Edições (1)

ver mais
Notas sobre a melodia das coisas

Similares


Estatísticas

Desejam3
Trocam
Informações não disponíveis
Avaliações 0 / 0
5
ranking 0
0%
4
ranking 0
0%
3
ranking 0
0%
2
ranking 0
0%
1
ranking 0
0%

0%

100%

Carla Porto
cadastrou em:
13/07/2015 17:02:43
Carla Porto
editou em:
20/11/2017 20:02:58

Utilizamos cookies e tecnologia para aprimorar sua experiência de navegação de acordo com a Política de Privacidade. ACEITAR