Assim como o entendimento da Revolução de 30 tem sido buscado como a chave para a explicação do Brasil moderno, estudar o Império tem sido a forma que muitos de nossos cientistas sociais encontraram para entender as raízes mais profundas do Estado brasileiro. Esta linha já inclui pelo menos dois trabalhos clássicos, de Raymundo Faoro e de José Murilo de Carvalho, aos quais deve ser acrescentado O Minotauro Imperial, do sociólogo colombiano Fernando Uricoechea.
Metade humano metade bovino, o Minotauro vivia no interior do Labirinto, e devorava os que nele se perdiam. O labirinto do Império Brasileiro é a grande contradição entre a extensão do poder privado e a centralização administrativa e burocrática do poder central. Para uns, a extensão do poder privado é prova da natureza quase feudal da sociedade tradicional brasileira, um Brasil cuja realidade residia nos senhores do campo e seus escravos e agregados, e em relação aos quais a política na corte não passava de uma tênue e enganosa superestrutura. Para outros, o que sobressai é a realidade dos centros urbanos criados pelo empreendimento mercantilista do colonialismo português, a burocracia inchada pela transmigração da corte portuguesa no início do século dezenove, e pela organização do exército a partir das guerras do Prata e do Paraguai. O Minotauro, que detém a chave deste labirinto, é, para Fernando Uricoechea a Guarda Nacional.
Metade pública e metade privada, a Guarda Nacional teria sido o vínculo privilegiado entre o poder público e o poder local, entre as formas mais tradicionais e as formas mais modernas e racionais de condução da coisa pública, entre sociedades e Estado. Ela funcionava através de serviços gratuitos prestados pelos "homens livres" e os dotados de recursos, os honoratiores, ao Estado - serviços a que o autor, na tradição weberiana, denomina de "liturgias". Seria de se esperar que, ao operar através dos "notáveis" locais, o Império Brasileiro tivesse contribuído para a consolidação de seu poder como estrato social privilegiado. Paradoxalmente, o que mostra Uricoechea é que, de fato, o caráter híbrido da Guarda Nacional terminou por impedir que se consolidasse no Brasil uma ordem senhorial, baseada em uma nobreza estratificada segundo os princípios da honra e do privilégio, e apoiada no monopólio da posse da terra. Ao contrário, a cooptação a que esta elite local era submetida através da Guarda Nacional terminou por enfraquecê-la como grupo social dotado de força própria, e prepará-la para, pouco a pouco, ir aceitando a gradual emergência de um Estado racional e próprio da sociedade burguesa e capitalista que pouco a pouco vinha se firmando no Brasil. Como diz o autor em sua conclusão, a experiência da Guarda Nacional foi "crucial, dialeticamente, ao contribuir para delinear uma ordem pública que transcendeu o particularismo de uma sociedade patriarcal da qual ela própria emergiu. Com efeito, o treinamento diário do homem agrário nas práticas e rotinas, cuja legitimidade tinha que ser procurada além do ambiente doméstico, representou uma escola para a socialização do homem brasileiro em formas alternativas de legítimação de poder e de autoridade. Quando visto nesta perspectiva, o aparente paradoxo por trás do fato do senhor de terras brasileiro e os homens livres pobres serem, inadvertidamente, atores principais no desenvolvimento de uma autoridade racional legal desaparece para aparecer, dialeticamente, como uma esplêndida síntese de sua participação política durante o século XIX" (p. 305).
http://www.schwartzman.org.br/simon/minot.htm
História do Brasil