O olhar judaico em Machado de Assis

O olhar judaico em Machado de Assis Anita Novinsky


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O olhar judaico em Machado de Assis





MACHADO DE ASSIS E OS JUDEUS

Não é de hoje que Anita Novinsky, doutora em História pela Universidade de São Paulo, se interessa pelo tema Inquisição. Os manuscritos existentes no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, tornaram-se íntimos da grande pesquisadora, crítica da forma como se leciona História em nosso País: “Até hoje ninguém ensina nas escolas e nos livros didáticos que a Inquisição atingiu duramente os cristãos-novos colonizadores e gerações de brasileiros aqui nascidos.”

Sob sua inspiração, a Universidade de São Paulo ofereceu um curso inédito sobre a Inquisição, ali se promovendo também, em maio de 1987, o Congresso Internacional Inquisição Brasil-Portugal, reunindo especialistas do mundo inteiro. A sua pertinácia bíblica levou a estudos que comprovaram a existência de cerca de 500 brasileiros cristãos-novos enviados a Lisboa, na primeira metade do século XVIII, para responder a processos por heresia judaica. Muita gente não se deu conta da barbaridade que significou esta “caça às bruxas”.

Por isso mesmo, é perfeitamente compreensível a adesão de Anita Novinsky aos trabalhos literários que, de uma forma ou de outra, visam ao resgate da memória nacional, mesmo no que possui de mais negativo. Assim ela chegou ao poema A cristã nova, de Machado de Assis (1839-1908), escrito no século passado, dentro dos ideais marcadamente revolucionários e liberais do período. Teria o patrono das letras brasileiras se deixado influenciar pela sua condição de mulato, solidário na dor da perseguição aos judeus? A hipótese é plausível, pois o mesmo sentimento libertário terá inspirado Castro Alves (1847-1871). Contemporâneos, Machado de Assis e Castro Alves poderão ter bebido na mesma fonte, embora se saiba que, na verdade, estiveram juntos muito pouco tempo, no Rio de Janeiro, quando o vate baiano procurou pelo grande escritor, em busca de um amparo que não aconteceu.

A leitura do trabalho de Anita Novinsky, transformado em livro pela sensibilidade de Ferdinando Bastos de Souza, enseja outra série de considerações. Quem se debruça sobre a Torá, onde se concentra a doutrina judaica, adquire conhecimentos que representam verdadeiras pérolas de sabedoria. Um dos trechos é bastante sintomático:

“Estes são os nomes dos filhos de Israel que vieram ao Egito.”

Mais adiante, a frase conclusiva:

“Porque não trocaram seus nomes e seus hábitos, por isso foram libertados do Egito.”

Uma das características do povo judeu, justificativa para a sua incrível sobrevivência, é a perseverança nas suas crenças e valores. Daí se ter criado em torno dele uma aura de respeito à tradição, como talvez não se encontre em nenhum outro povo.

Tais elementos estão presentes em nossa literatura. É só questão de pesquisar. A convite de Austregésilo de Athayde, realizei conferência na Academia Brasileira de Letras, focalizando o ideal de liberdade na obra do poeta Castro Alves. Surpreendi-me, no trabalho feito, com o comprometimento do autor de Vozes d’África com a saga hebraica. Não foi só teoria, pois ele chegou mesmo a se enamorar de uma das irmãs Amzalak.

Aprofundei a análise da árvore genealógica de Castro Alves e alcancei a existência de uma bisavó de biografia obscura, nascida na Europa, que bem poderá ter sido o elo judaico da reconhecida identificação do poeta com o povo eleito. São variados os momentos, na poesia de Castro Alves, em que ressalta esta temática, permitindo supor ter sido ele cristão-novo. Quem garante o contrário?

Pouco depois de ter realizado esses estudos, encontro a minha amiga Anita Novinsky no seminário sobre o olhar judaico, promovido pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, por inspiração de Heloísa Buarque de Holanda e Nelson Vieira. Tive minha atenção despertada para o seu trabalho sobre Machado de Assis, com a alegria dessa retomada de contato com o maior dos nossos escritores, cuja generalidade tocou o tema judaico em diversos momentos.

Em A cristã nova há elementos de primeira ordem para recordar as seqüelas de um período de intolerância quase inacreditável. Anita coloca isso de forma bastante nítida:

“Na Inquisição está o modelo ideal da implantação de regimes totalitários, dos seus métodos de tortura, de como são tratados dissidentes políticos e sociais, de como isolar milhares de pessoas proibidas de conhecer suas origens culturais, da miséria dos condenados ao silêncio e à incomunicabilidade, do racismo mascarado em novas ideologias e da apropriação de bens como fiança desses crimes.”

Em suma, para Anita Novinsky a Inquisição ainda existe e incumbe a cada um de nós, com a sua formação democrática, verberar o que ela representa. No poema que dá origem ao livro citado aborda-se “a frágil, conflituosa e dramática vida dos judeus no Brasil, nos séculos coloniais, frente ao poder máximo - político e religioso - da Inquisição”. Anita seleciona diversos e elucidativos trechos em que ressaltam três conceitos nucleares: Tradição, Continuidade e Sacrifício, este último tipicamente judaico.

Se o pensamento é como as aves passageiras (“voa a buscar melhor clima”), não há dúvida de que Machado o valoriza, num comprometimento com a idéia de liberdade que acompanha a sua magnífica obra, como está presente nas preocupações permanentes do povo judeu (Direito, Justiça e Liberdade).

A fidelidade ao povo de Israel se expressa no poema quando o pai aconselha:

“Ama: é a lei da natureza, eterna!
Ama: um homem será da nossa raça...”

E aqui recordo a firmeza de hábitos e costumes do povo judeu, nas agruras vividas no Egito. Passa-se ao conflito dos cristãos-novos, durante séculos se debatendo entre uma fé e outra, sem pertencer convictamente a nenhuma delas.

No poema de Machado, encontramos Nuno impotente diante do Santo Ofício. No final, invertendo as posições, Ângela (a filha) evoca o povo judeu e a sua imperecibilidade: “Verdeja a nossa fé; a fé que anima o eleito povo.” A jovem cristã-nova retorna ao seio do seu povo, o que se dá através do sacrifício. No citado trabalho, Machado de Assis, com muitos anos de antecedência, numa premonição genial, reflete todo o seu sentimento:

”Israel tem vertido
Um mar de sangue. Embora! à tona d’elle
Verdeja a nossa fé, a fé que anima
O eleito povo, flor suave e bella
Que o medo não desfolha, nem já secca
Ao vento mão da cólera dos homens!”

O que distingue o grande escritor dos demais é o sentido de eternidade que marca a sua obra - o que em Machado de Assis está presente de forma permanente. E que Anita Novinsky, com sua rara sensibilidade de pesquisadora e escritora, soube captar para transformar no livro O olhar judaico em Machado de Assis (Editora Exped).

Revista Brasileira, n. 5, 1995.Arnado Niskier))

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Húdson Canuto
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