Paulo 06/10/2018
Pode o destino de duas pessoas estar tão interligado que não importa o tempo ou o universo, eles sempre se buscarão? Uma história bem clichê, mas lindamente executada por Jeff Lemire, nessa HQ um pouco subestimada publicada no selo Vertigo, da DC Comics. Uma história que vai atravessar centenas de séculos, mas que dirá a cada um de nós que não estamos sozinhos. Sempre vai existir aquele ou aquela que nos completa, que nos preenche, nos faz inteiros. E essa pessoa pode vir dos lugares mais estranhos possíveis.
Este é o segundo trabalho que eu li do Jeff Lemire e confesso que gosto bastante do roteiro dele. É engraçado porque Trillium é uma história que não é inovadora ou qualquer coisa especial. Mas, ela consegue nos tocar. Lemire tem o dom de fazer de seus personagens pessoas interessantes nas quais acabamos por nos importar devido aos seus problemas tão reais. Se formos parar para pensar bem, tudo o que eles passam nada mais é do que uma jornada para a busca um do outro. E isso é feito através de um cenário de ficção científica que no final do livro acaba perdendo um pouco sua importância diante do que ambos precisam superar. O estalo de entender por que eles se encontravam naquela situação e qual era a solução necessária só vai se dar lá bem para o final. E que final doce! Já sou um fã de suas histórias.
Falando sobre o traço do Lemire, eu admito que ele é tenebroso. O Lemire tem um traço bem estilizado e de fato não me agrada nem um pouco. Mas, isso os fãs do autor sabem muito bem. Ele não é um autor famoso por ter um belo desenho, mas um roteiro excepcional. Entretanto, ele consegue surpreender o leitor com algumas ideias de desenho bem peculiares. Por exemplo, no capítulo 5 ele escreve a narrativa em uma escala de quatro fileiras de quadros: as duas de cima pertencem à Nika e as duas de baixo pertencem ao William. Enquanto que a parte da Nika, o leitor lê da forma normal, a parte do William deve ser lido em sentido contrário (do fim para o começo). A ideia da concepção daquele capítulo é que o universo estaria espelhado. Lemire só conseguiu isso porque ele imaginou esse trecho mesclando sua habilidade como roteirista aliado à sua arte. Outro elemento bem sutil acontece no capítulo 2, quando os personagens se encontram pela primeira vez. O preenchimento dos quadros é diferente para eles: enquanto que para a Nika é em tom de azul e vermelho, os de William são em verde e marrom imitando uma selva. Lemire faz umas brincadeiras bem curiosas com a arte que valem a pena serem estudadas. Isso, apesar do traço dele.
O verdadeiro brilho dos personagens está no aliar personagens à narrativa. Nika é uma mulher que sofreu a perda de sua mãe quando jovem. Desde então ela acabou por se recolher em si. Ela até construiu Essie, uma IA que responde apenas a ela. Está totalmente fora dos computadores do Terralab e percebemos que é quase como uma companheira para a nossa personagem. Por conta desse aparente isolamento da personagem, ela acaba se sentindo insegura a respeito de suas próprias ações. O medo de acabar sozinha de uma vez por todas acaba atrapalhando sua relação, por exemplo, com a capitã Pohl.
Um ponto legal da Nika é que ela detecta o que sua capitã pretende fazer quando encontrar um campo de trillium e se coloca veementemente contra. Mesmo em se tratando da defesa da humanidade diante da aniquilação, ela não concorda com o genocídio de seres sencientes. Esse aspecto da personalidade dela vai estar presente do início ao fim do quadrinho. Gostei muito da personalidade dela como mulher: ao mesmo tempo em que ela é uma pesquisadora e luta contra a extinção total, ela consegue manter as suas ideias.
Já William é uma pessoa que foi profundamente afetado pela batalha do Somme acontecida durante a Primeira Guerra Mundial. Estar diante de tantas mortes acabou por se tornar algo marcante em sua vida. Deixou rastros em sua personalidade: torturado e triste ao se ver, por exemplo, diante de uma pequena poça onde seus companheiros estavam desmembrados. Quando retorna para casa, ele precisa buscar um motivo pelo qual continuar a viver. O PTSD (Síndrome Pós-Traumática) que afeta soldados que retornam da guerra é um tema trabalhado de forma bem sutil pelo autor. O leitor se dá conta de que o personagem luta para tentar vencer aquilo, mas que aquelas marcas e aquelas dúvidas acabam por persegui-lo quando ele é colocado contra a parede.
Inicialmente a grande luta de William está em acreditar naquilo que está acontecendo. Se ver diante do impossível faz com que ele questione a sua sanidade. Será que sua mente finalmente cedeu diante de toda a desgraça que ele viveu? Esse questionamento vai estar presente até na forma como ele e Clayton (seu irmão) se relacionam. Clayton não consegue acreditar totalmente na cura de seu irmão e tenta protegê-lo a todo custo. Às vezes até de si mesmo.
Por ter 8 edições, eu fiquei um pouco decepcionado de Lemire não ter dedicado mais tempo de cena aos personagens de suporte. Por exemplo, a capitã Pohl foi muito mal aproveitada. A gente não era capaz de saber de que lado a personagem estava porque ela mesma não era muito coerente. Não sei dizer se havia uma inimizade dela com Nika ou até inveja. Ou se a versão inicial dela, estoica, porém preocupada com a protagonista era real ou não. A própria relação de William com Clayton poderia ter sido um pouco mais aprofundada. Entendo que a história era sobre William e Nika, mas estes personagens de suporte não podem estar ali apenas porque sim. Eles fazem com que os protagonistas sejam personagens mais ricos em relações.
A história dos dois é absolutamente linda. Para alguns vai parecer forçada essa ligação tão intensa sendo que ambos se conheceram apenas algumas horas antes. Mas, eu acredito nisso. Existem relações de amor que não podem ser explicadas pela racionalidade. A gente sente e pronto. Essa conexão com outro indivíduo pode acontecer. Sabe aquela pessoa que te desperta algo no coração do qual você não sabe porque sente de forma tão poderosa? Um sentimento durando séculos, milênios. Aquela pessoa só é certa para nós. Nada além disso. Somos completos ao lado dela.
Enfim, Trillium é uma bonita história de amor ultrapassando anos e universos. Uma história talvez clichê, mas executada com maestria por esse autor que sabe trabalhar as emoções de seus personagens. Ela merece ser lida por nós com calma e apreciada com suavidade.
site: www.ficcoeshumanas.com