Paulo 02/12/2021
Quantos de nós já não presenciamos, sofremos ou participamos de atos de bullying quando estávamos na escola? Já há alguns anos, a escola passou a ter uma preocupação maior com o potencial negativo do bullying na vida de uma pessoa. Em A Voz do Silencio, Yoshitoki Oima nos mostra o bullying a partir do ponto de vista de quem sofre e de quem pratica. E dos efeitos negativos que se tornam a consequência de tais ações. Além disso, a autora nos mostra os obstáculos e desafios que uma pessoa que possui deficiência auditiva passa. Tudo isso em uma narrativa sensível e emocionante que já encantou milhares de fãs pelo mundo todo.
Shouya é um típico menino inquieto em sua juventude. Gosta de pregar peças, aprontar todas e não tem paciência com as lições da escola. Tudo isso é tedioso, segundo ele. Ele mora com uma mãe solteira que precisa trabalhar em seu salão de beleza para colocar comida na mesa e sua irmã é uma pessoa que sempre tem um namorado novo toda semana. Shouya tem um grupo de amigos com quem gosta de brincar de se atirar no rio do alto de uma ponte. São as provas de coragem. Mas, à medida em que eles vão crescendo as brincadeiras sem noção do Shouya vão se tornando bobas. E os amigos que tanto zoavam junto com ele, agora tem outros interesses. E o tédio volta à vida de Shouya. Mas, uma nova aluna chamada Shouko vai despertar o interesse pouco usual do garoto. Isso porque ela é uma menina que possui deficiência auditiva. A partir daí, Shouya vai aprontar todas com ela até que um dia aquele que fazia o bullying se torna vítima do bullying.
A Voz do Silêncio é um mangá bem pesado e que fala de um tema tão presente em nossa vida que pode acontecer ou já aconteceu com qualquer um. O protagonista, Shouya, é um personagem bem difícil de sentirmos empatia. O fato de ele fazer bullying com a Shouko é uma maneira nítida de chamar a atenção. Ao perder a atenção de seus amigos que não desejam mais fazer coisas bobas, ele vê no bullying a Shouko uma maneira de superar o tédio. Só que ele não se dá conta do mal que ele está causando na menina. Suas ações se tornam cada vez mais abusivas à medida em que o tempo passa até que a escola decide finalmente intervir. O que ele não esperava era que acontecesse o contrário com ele. Que aqueles que riam e se divertiam com os abusos cometidos contra a Shouko fossem os primeiros a se voltarem contra ele. O abusador se torna aquele que sofre o abuso. E ele não sabe mais como lidar com toda a situação.
Falando um pouco da arte, ela pode parecer simples a quem vê em um primeiro momento. Até porque a autora se preocupa mais com os personagens em si do que o fundo. Não é incomum vermos páginas e mais páginas de fundo branco. O trabalho que ela tem com as expressões dos personagens é fascinante. Todos os personagens possuem gestos e expressões que os definem. Sabemos quando a Shouko está alegre, triste ou pensativa; o mesmo vale para o Shouya. Em uma narrativa sobre uma menina que tem deficiência auditiva e fala muito pouco no mangá, a autora precisou encontrar formas alternativas de fazer com que ela se comunicasse com os demais personagens. Em volumes posteriores, veremos mais acerca da linguagem de libras, e ela começa a introduzir de leve isso no primeiro volume, mas podemos ver como ela precisa tocar para expressar determinadas frases, ou a maneira como o seu corpo reage a certas circunstâncias. Essa preocupação com o personagem antes do fundo e com a forma como ele interage com aqueles que o cercam possui um alto grau de dificuldade. Ou seja, a arte não é surpreendente, mas a forma como ela faz os personagens ganharem vida e expressividade é o que faz dela tão diferente.
Nesse primeiro volume, vemos também uma forte crítica à maneira como a escola lidou com o caso da Shouko. E é um reflexo de várias escolas espalhadas pelo Brasil. Ela é colocada na turma e precisa se adaptar à maneira como a aula acontece. É lógico que isso não vai dar certo e a menina logo começa a ficar para trás e atrapalhar a dinâmica da sala. A coordenadora pedagógica é completamente despreparada para lidar com o caso da Shouko, principalmente quando os casos de bullying começam a acontecer. Em nenhum momento vimos os pais sendo chamados para conversar sobre seus filhos, apenas foi adotada uma postura punitiva. O professor é o pior problema: é um cara que não só se diverte com as brincadeiras tolas feitas com a Shouko como ignora o que pode fazer para melhorar a qualidade de aprendizagem da menina. Estamos em um momento de discussão sobre inclusividade na escola e temos um ministro da Educação que fala da necessidade de separar os alunos com deficiência como se fossem alienígenas. Não tem a ver com separação; tem a ver com preparação e estabelecer políticas públicas educacionais que permitam a essas pessoas. Me senti mal ao ver toda aquela situação acontecendo com a menina e a inércia absoluta da escola.
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