Cassio Kendi 17/09/2021
Quando um livro chega em casa, a primeira coisa que faço, antes de observar a arte da capa ou ler o verso, é cheirar as folhas. Alguns cheiram a jornal, outros a 'química', outros a gibis que meu tios-avós guardavam no sítio deles, num armário perto da televisão.
'Duas Vidas' foi uma experiênica multissensorial para mim: o livro tem um cheiro bom de giz de cera; as páginas são macias; a arte e as cores são agradáveis; e as músicas mencionadas são bem escolhidas, com destaque para 'Les oiseaux de passage', que eu nunca tinha ouvido.
Quanto à história em si, não é minha favorita com o tema 'personagem com doença terminal se vê obrigado a encarar sua própria mortalidade'. "O útimo sopro de vida", por exemplo, para mim é bem melhor por ser mais complexo, tênue e real (talvez por ser uma autobiografia, e não uma ficção).
Uma ideia central do livro com a qual não concordo tanto é de que é necessário abandonar tudo para se ter uma vida feliz. É simplificar a felicidade em extremos, ao invés de enxergar o espectro entre estes dois pontos. O próprio título, 'Duas Vidas', insinua esta escolha binária. "Infinitas vidas, com diferentes graus de felicidade, variando por uma quantidade enorme de escolhas e eventos" seria um título menos chamativo, mas mais realista.
------------------------------------------
ATENÇÃO - SPOILER ABAIXO
------------------------------------------
Para quem já leu, dois pontos que para mim afastaram a história de algo mais realista:
1) Benim, o país em que ele escolher viver, é o 158° no ranking de IDH. Em comparação, a França, seu país de origem, está em 22°, e o Brasil, em 84°. Abrir um restaurante em um país com tantos problemas socio-econômicos não deve ser o final feliz e sem problemas que o livro faz parecer.
2) A abordagem de Luc para convencer Baudoin a 'viver' beira o absurdo, apesar de ser o plot twist principal da história. Havia muito mais possibilidades de uma estratégia dessas dar errado do que certo: Baudouin poderia ter tomado um processo ao agredir o chefe, poderia ter se descuidado em suas relações sexuais, poderia ter entrado em um estado depressivo ainda mais profundo. Mesmo dando certo, Luc tira o poder de escolha do irmão, e a decisão de mudança de vida passa a ser mais circunstancial do que fruto de uma vontade interna.
Enfim, a leitura foi divertida, mas para mim não foi tão impactante quanto a outra obra que li do autor, "Não era você o que eu esperava".