Douglas MCT 15/06/2019
Um dos maiores clássicos dos quadrinhos continua atual, poderoso, icônico e épico, mesmo após a terceira releitura em décadas
Resgatando um antigo herói da Era de Ouro da DC Comics e com uma receosa aposta de sua editora, Karen Berger, para recriar a figrua do zero em um novo contexto, Neil Gaiman, um dos maiores autores contemporâneos, usa de todos os elementos narrativos que conhecia e era apaixonado, para narrar a jornada lírica e sombria de Sonho, um dos sete Perpétuos (que ainda conta com Destino, Morte, Destruição, Desejo, Desespero e Delírio), que reina no Sonhar, em histórias que tratam de inúmeros temas (tentar citar todos seria um risco) de maneira brilhante e singular.
O novo encadernado comemorativo de 30 anos de criação desse universo trás um material mais acessível, principalmente para novos leitores, com capa cartonada, papel couchê e ótimos 35 reais ou menos para o bolso (diferente dos impossíveis cento e poucos reais da versão de luxo), compilando as 8 edições iniciais que formam o primeiro arco do personagem "Prelúdios e Noturnos", que no começo é aprisionado por um homem mesquinho e passa dezenas de anos nessa condição – o que gera uma condição extremamente bem sacada do autor. No período em que Morfeus esteve preso e fora de seu reino, o mundo passou pela Segunda Guerra (do nascimento dela, as consequências do pós-guerra), onde o desespero e a desesperança tomaram o planeta. Quando o protagonista consegue escapar, ele sai em busca de seus três artefatos, o que fornece a ele um crossover com Constantine, o levando até o Inferno e então, a enfrentar Dr. Dee, de longe um dos maiores vilões que os quadrinhos já viram – gerador do caos pelo caos, uma figura ingênua que só quer o mal porque acha divertido e não há nada mais assustador do que isso.
É claro que nestas primeiras edições, Gaiman ainda estava preso ao universo DC, por isso citações ao Asilo Arkham, Superman e outros heróis da editora são recorrentes, quase que forçados goela abaixo, mas ele consegue subverter algumas saídas e entregar bons momentos nessa mistura toda. É interessante notar como, naquele final dos anos 80, o autor foi capaz de criar algo que evoca Shakeaspeare, mitologias (de qualquer cultura, inclusive as bíblicas) e literatura gótica de um jeito que não havia sido pensado ano, montando seu castelo de cartas de maneira autêntica e diferente de qualquer outro material já realizado até então. Por isso, os trunfos de Sandman não são gratuitos, nem a série é superestimada. Ela é o que é, até os dias de hoje e daqui em diante sempre, por ser uma definitiva obra-prima, carregada de literatura, de cinema, de teatro, de prosa e poesia, unindo todas as artes na nona e fornecendo diálogos ora pueris, ora grandiloquentes, em contextos de fantasia urbana, um gênero que ainda engatinhava na época (e que o consagrou depois).
A arte nunca foi o forte da graphic novel, que trazia essa estética podre de fanzine, quase amadora em estilo e traço, mas carregada de emoção e pungência, elementos tão característicos e intrínsecos a Sandman quanto todo o resto. Assim, Sam Kieth, Mike Dringenberg e Malcolm Jones III, ao compreenderem a proposta da obra, conseguem entregar um material que, se não é belo, pelo menos é eficiente, com decupagens delirantes, trabalhos ousados de requadros e até planos impactantes, que denotavam o ar imaginativo do escritor e o tom ora fabulesco ora abstrato que a trama pedia, sem roubar a cena do ponto principal: o roteiro fantástico e inventivo, que em uma única edição e sem mostrar seu protagonista, já consegue torná-lo cativante e interessante, ao seu modo melancólico, figurado como um tipo de rockstar.
A oitava e última edição do encadernado é, nitidamente, quando Gaiman encontra seu verdadeiro ponto de partida. Ainda que os sete capítulos anteriores tenham servido de base para sustentar a premissa e apresentar o personagem e seu universo, em uma história de mistério e magia realmente maravilhosa, é no encontro do Sonho com a irmã Morte que Sandman acha sua voz e seu rumo narrativo, que vai culminar em 10 encadernados, com outros três ainda previstos para esse ano, mais quatro no próximo e dois em 2021. Esta edição ainda conta com um prefácio apaixonado do grande autor de fantasia Patrick Rothfuss (de O Nome do Vento) e da editora original, Karen Berger, que narra como realmente aconteceu o encontro dela com o autor, e como Sandman nasceu. O volume se fecha ainda com depoimentos do próprio Gaiman sobre o quadrinho.
Genial e único, Neil Gaiman se realiza como quadrinista e autor em sua verdadeira estreia nos quadrinhos há 30 anos, com a obra máxima de sua carreira. Sandman é uma delícia de ler, como qualquer mangá, europeu ou super-herói, então não se engane, aproveite a oportunidade para conhecer esse material agora. Venha sonhar conosco.