Quase Verbo

Quase Verbo Jurandir Barbosa


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Quase Verbo





Quase verbo: corpo inscrito no corpo das cidades___

Marli Fróes -
Escritora, poeta e Dra. em Literatura


__Vivo no quase, no nunca e no sempre. Quase vivo, quase morro. Quase podia me jogar pela janela de meu sétimo andar. Mas não me lanço. Quase advinho as coisas. Sei muito e quase não sei. Já estive três dias à beira da morte. E dela guardo a mão direita deformada.

__Clarice Lispector


__No livro “quase verbo” povoam inquietações e signos variados: a carta que veio e não veio, por baixo da porta, o sexo, as nuvens pubianas, Maiakovski, a medida ou desmedida do amor: “no meu corpo de 1.90/cabe tão perfeitamente o seu 1.60/ que nem de salto você precisa/para ficar do meu tamanho”; a doença de Teresa: “24 de agosto e ;Tereza não se lembrou./maldito alzaimer”; seu colo que acolhe, o beijo, os filhos, os amores, o clamor pela cultura refinada como força que deve sobrepor aos produtos culturais massificados, os amigos (Sholmes Souto, o grandioso Elthomar Santoro, Wanderley, Warley e outros evocados implicitamente na poesia), os afetos, a mulher descalça que desce a ladeira, os putos, as putas, o delírio das pessoas e das cidades, os medos: “envelhecer não me aterroriza/medo tenho mas bem poucos,/me perder dos olhos de Tereza/não existir para os meus filhos/e os meus lábios se esquecerem/do calor do seu beijo”, enfim temas variados que associam tanto o delicado, quanto o grave da vida, a exemplificar o poema acordos:
...
“as putas/negociam as bucetas.
os putos/negociam a nação.
Deus, dê vida longas as putas
e, transforme brasília em sal."
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Tereza é sempre a referência matriz, motriz de acolhimento, consolo: “hummmmmm...tem até nome.colo.um colo que me proteja e não que me exponha, um colo que me abrigue e não que me exclua.um colo que tão quente quanto o de dona tereza ainda me dê calor e beijinhos na boca, sem pressa...esse colo, esse colo... bem, não desisto e abro mão da fé dos 55 milhões pela crença do colo.mão a passear na cabeça descobrindo meu corpo e colando sua boca em minha boca. [pause][...]”
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Todas essas inquietações humano-poéticas estão também afiguradas no dilema com o tempo, traduzido no sentimento-quase, na sensação de que não se escreveu tudo, não amou tudo e a todos, enfim não se viveu tudo ainda. Sentimentos também registrados por Clarice Lispector: Os dois escritores, cada um no seu tempo, afirmam o seu viver-escrever no “quase”. Sabem, no entanto, que viver no quase é também viver no nunca e no sempre: “o meu sapato de bico quadrado quase virgem em ser feliz deixou por essas avenidas, tão pouco pó, quantas tão poucas lembranças deles. cabe tudo numa mão em concha”.
A captura da vida-linguagem é resultante de um esforço humano que pretende transcender os limites que o tempo, a memória e a metrópole impõem. A força poética de Jurandir Barbosa está na coragem de deixar escapulir, sem censuras, a escrita fluxo, a palavra primeira, a que beira a boca e a tela: o quase verbo, que borbulha quente na superfície do papel.
A exposição do trágico da vida lembra a geração beat representada por Jack Kerouac, Allen Ginsberg e William Burroughs. Essa referência estará tanto no livro anterior ( Atrito), quanto em “quase verbo”. Jurandir mobiliza sua urgente escrita alucinada, tal qual Kerouac, na sua quase tragicidade de ser escritor em luta para fazer o texto circular e pelo ato de registrar os tormentos e dificuldade para equilibrar-se na selva cidade; espaço das contradições e gravidades.
A poesia de Jurandir traduz bem o que eu nomeio de movimento neo-beat: vida e poesia nômades, na contramão e na contracultura. Sem dúvidas, um eco da cultura beat, com roupagens novas. Jurandir é exemplar do beat do século XXI, artista que atua como um grande vagabundo (sem conotação negativa), no seu jeito torto, caminhando pela avenida paulista, fotografando momentos, sensações, percepções. Ao caminhar pela avenida paulista estará também caminhando pelo mundo, por todas as cidades e por cidades imaginárias:
“não há números não há cifras/o que me apetece/são os sorrisos/e vagabundamente os gozos./sou torto/sem chances/assim como desentortar o meu pau/não há chances.
caminhando pela avenida paulista/lá vai o vagabundo”.
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Esse vagabundo é o autêntico flâneur, aqui, no sentido desenvolvido por Charles Baudelaire: pessoa que caminha pela cidade para experimentá-la a fim de compreender o urbano, a modernidade e seus reflexos no comportamento humano.
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Em “quase verbo” o poeta-flâuner investe em um caminhar-pensar, resultando na construção de uma a poética solidária com as pessoas, com os espaços e seus reflexos nas gentes e suas relações. Essa experiência solitária desemboca numa estética especial: a literatura flâuner.
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Caminhar pela cidade equivale a caminhar para os sentidos, sensações, para a humanidade esquecida, nos espaços cosmopolitas; questão fortemente presente na poética de Jurandir Barbosa, tanto em “Atrito”, quanto em “quase verbo”. O poeta em trânsito, pelo interior e pela grande metrópole, reconhece que a província também pode estar contida na cidade grande e que nada é definitivo. Inclusive há possibilidade de atar tempos, lugares experiências: “fotografias em mosaicos/da mocinha de Guarulhos/das árvores de Goiânia/da caatinga de montes claros/da catinga de são Paulo”.
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Nota-se, também, na escrita de Jurandir Barbosa, uma relação poética solidária ao movimento Catrumano: uma tentativa de colocar o Norte de Minas, o sertão, no circuito nacional, seja através da poética ou por meio de iniciativas culturais e políticas que valorizem e reconheçam a cultura Norte Mineira, na sua pluralidade. Nesse empreendimento também são exemplares, os trabalhos da Editora Catrumano (com suas publicações), o Salão Nacional de Poesias Psiu poético (realizado em Montes Claros), e o grande trabalho do grupo Baru Sonoro (também de Montes Claros). Empreendimentos merecedores de um olhar mais apurado dos críticos de arte e da mídia; questão que comparece evocada na poesia de Jurandir:
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“são paulo é foda./são paulo não vai ao sertão/são paulo não leu poesia x
são paulo existe nas escadas dos shoppings/e nas vielas dos cinemas.
são paulo não tem tempo/são paulo não tem gente”
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Se as grandes metrópoles estão no grande circuito cultural, alienadas do sertão - fato de uma gravidade histórica com sérias implicações político-sociais - está mais que na hora de São Paulo ir ao Sertão.
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As cidades estão inscritas no corpo do poeta e no corpus textual. O Poeta é cidadão em trânsito, com a sua poesia igualmente em trânsito. Debate-se com a metrópole, interpreta-a, interpela-a e volta seu coração olhar para o acolhimento de Montes Claros. Verbaliza a sua comunhão e ex-comunhão em relação à metrópole: “não caminho em linhas retas/não sou daqui/sou de lá/não sou assim não sou assado/ sou cru /[...]eu'sentado'na'beirada.”
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O sujeito “atrás da pena” afirma o desejo, via arte, de fazer os espaços sócio-culturais se imbricarem. Essa poética politizada, contudo, e, felizmente, não tem o peso panfletário, uma vez que a poesia se mantém.
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Poesia e poeta estão no entrelugar, longe de qualquer pertença, ou definições decisivas. Estão no devir vida, devir linguagem, nos deslizamentos, no provisório, no quase, que são sempre espaços mais produtivos, por isso o próprio fazer-poético é corajosamente posto em questão pelo poeta: “a poesia não é 01 faz de conta./tem que ter o impacto/de 01 tapa na cara./ fica vermelha cara vagabunda.”
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Decisivamente estamos diante de uma poética forte, que reverbera. Tanto em “Atrito”, livro anterior, quanto em “quase-verbo” conserva-se a grandeza de uma poesia que mantém a visceralidade com a vida, o que nos impele a recorrer ao lema do poeta: “não ter muros”, ter “mãos abertas” para acolher esse “jardim que não tem fim”.
Esse é um convite!
Eu leitora quase-primeira, estive à beira: quase-morri, quase-vivi. Entrei nos estados gozosos do quase-verbo, saí vagabundeando re-verb-eirada. É a sua vez...

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Jurandir
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15/01/2012 11:29:58

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