Em 1957, já mundialmente conhecido e então endeusado com a exibição de um filme baseado em sua obra (“Aquele que deve morrer" ou “O Cristo recrucificado”, de Jules Dassin), Nikos Kazantzákis (1883-1957) resolve empreender, com sua mulher Élena, mais uma de suas viagens ao Oriente, desta vez com ênfase na China e no Japão. Após visitar a China, cujos resultados da revolução, ocorrida oito anos antes, o sempre curioso cretense queria conhecer, o casal se detém em Hong Kong, onde seria necessário vacinar-se contra a cólera e a varíola, requisitos oficiais para se entrar no Japão. Kazantzákis lutava contra uma incipiente leucemia e a vacina, neste caso, provocou uma reação nefasta: paralisou-lhe o braço direito, que precisaria ser amputado. Élena salva o marido da mutilação, levando-o de volta para Frieburg, na Alemanha, onde um tratamento de choque consegue aproximá-lo da sonhada recuperação. Mas Kazantzákis, “um dos maiores espíritos do século XX” (no dizer de Otto Maria Carpeaux), sente que seu fim está próximo e precisa concluir a sua obra. Nestas circunstâncias é que se lança, com todo empenho, na revisão e conclusão daquele que seria seu testamento espiritual, o “Relatório ao Greco”. “Guardo minhas ferramentas... a tarefa terminou... como uma toupeira, volto para a casa, para a terra. Não por ter me cansado de trabalhar, não me cansei, mas o sol se pôs.”
Doménikos Theotokópoulos (1541-1614), nascido na mesma Heráclion cretense de Kazantzákis, depois de uma longa peregrinação artística pela Itália, fixou-se em Toledo, na Espanha, onde se tornou o grande pintor hoje conhecido por El Greco. A esse ancestral, que como ele carregava nas mãos um torrão do solo natal, Kazantzákis dedica seu livro-testamento, simbolizando nessa figura todo um passado glorioso de sua estirpe. No texto, muitas vezes o pintor é assimilado ou confundido com o próprio pai e com o avô do poeta. E a narração de seus feitos, reais ou idealizados, se confunde com a própria saga de uma Hélade dominada e ressurrecta, que consegue superar-se com base em seus valores históricos, na epopeia de seus heróis. Para completar o livro, a história de sua permanente procura de Deus e da sabedoria, Kazantzákis deixa de lado outros grandes projetos em se envolvera: a tradução para o inglês de sua recriação da “Odisseia”, de Homero, com 33.333 versos e o “Terceiro Fausto”, que sempre sonhara escrever.
A vida e a obra de Kazantzákis encerram uma permanente busca da superação. Já em seu livro “Ascese, salvatores dei”, o autor procurava desesperadamente conciliar as antinomias que lhe atormentavam a consciência: a ação e a contemplação, buscando uma síntese entre o comunismo e o cristianismo. Passara por fases espirituais transcendentes: Buda, Lênin, Cristo, Bergson, Nietzsche, superando cada uma delas com a ideia de que a verdade total não lhe havia sido ainda de todo revelada, que era preciso ir mais longe, mais fundo, mais alto, um passo além do que julgara ser o último possível. Já na maturidade de seu pensamento, tentando a superação do destino e dos valores arraigados, Kazantzákis sente a necessidade de relatar sua experiência de vida, sua luta obstinada de encontrar a verdade e Deus, não para amá-los, mas para contestá-los e destruí-los. Num de seus diálogos com Deus, o autor conclama: “Sou um arco em suas mãos, Senhor, tensione-me senão apodreço. Não me tensione demais, Senhor, posso quebrar-me. Tensione-me, Senhor, mesmo que eu quebre.” Essa luta e essa esperança é que são as entranhas da confissão-despedida-testamento, o “Relatório ao Greco”, na qual se ouvem ecos de Zaratustra e conselhos de Demian...
Destaque para a tradução brilhante de Lucilia Soares Brandão.
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