Um Contraprograma

Um Contraprograma Sergio Cohn


Compartilhe


Um Contraprograma





Se a praça fosse um terreno baldio
Luiz Guilherme Barbosa

É como se, nesses novos poemas de Sergio Cohn, a poesia se colocasse sob a questão da ética. Porque, lançado ao leitor imprevisível, o poema como que recua de qualquer imponência e, como antídoto ao monumento, chama para o papo. O texto publicado contra ou apesar das palavras de ordem, traço mesmo de alguma poesia contemporânea, aqui se elabora nos espaços do mato, do mar, do jardim, do terreno baldio, da selva. São espaços, para esses poemas, de alguma praça possível, e são, esses poemas, uma resposta singular às dúvidas que as formas da democracia têm suscitado.

O poema público, então, pode começar numa das festas tristes da infância na casa da avó ou então no táxi ao voltar da celebração ao poeta e amigo no Circo Voador. O papo do poema começa, no primeiro poema do livro, com um poeta chileno, cujos versos traduzidos para o português são o mote de uma conversa sobre como seguir em frente quando se está supostamente perdido. Seja na festa de infância, no táxi voltando para casa ou na conversa com o poeta chileno, um aprendizado que só pôde acontecer depois das conversas se enuncia: “no fim / tudo acaba / em vida” ou “‘não se pode / viajar / sem dinheiro’” (nem que seja só um real) ou “e nunca estivemos realmente sozinhos”.

E por isso mesmo o que se lê nesses poemas não é lição alguma, mas, antes de tudo, as condições de possibilidade para que as relações aconteçam e, com elas, seus efeitos, como, por exemplo, a aprendizagem. Se, depois de ler “Um poema para estes tempos”, o leitor termine por saber que “nunca estivemos realmente sozinhos”, não é propriamente por ter acreditado no verso, pois o poema, em seu elogio da calma, do silêncio e dos animais, já havia começado “com um verso de Jodorowsky”, que na verdade são dois (o verso não está realmente sozinho): “se estamos perdidos, / melhor não andarmos tão depressa”.

O poeta, não estando ele mesmo sozinho ao começar o poema, atravessa, junto com o leitor, nos dois primeiros versos, um espaço textual de autoria ambígua ou dupla, pois os versos de Alejandro Jodorowsky, grafados em itálico e falando por “nós”, são também a tradução feita deles por Sergio Cohn para o português e são os versos que começam o poema de Sergio Cohn. Se o verso não está ele próprio sozinho, um dos motivos parece ser o de que os autores desse verso (ou, na tradução, desses versos) são, pelo menos, dois. Mas isso não quer dizer que estar acompanhado signifique compartilhar a autoria.

Pois logo em seguida se lê que “a poesia é a linguagem não-comunitária”. É por isso que, nesses poemas de Sergio Cohn, os espaços que renovam a possibilidade da praça, sendo quase todos eles espaços privados ou espaços fora da cidade, são possivelmente nomeados por algum verso como “o baldio das relações”. Não um espaço baldio, mas o baldio, que, sendo aquilo que não vale a pena, não é nem selvagem nem cultivado. Ou seja, é inculto. Palavra, ela própria, de origem baldia, pois provém do árabe, uma língua que contribuiu decisivamente para a formação do português sem que fosse cultivada pelos portugueses nem mesmo uma língua selvagem de estrangeiros invasores.

A força dispersiva e despersonalizadora do poema – cuja autoria no começo se estilhaça entre poeta, poeta e leitor – se enuncia, no entanto, de forma clara e concentrada, em versos curtos e cortados. Isso talvez o que tenha levado Claudio Willer, leitor da poesia de Cohn, a considerá-lo “um insuspeito pessoano, um Alberto Caeiro atualizado”. De fato, parece mover a obra de Sergio Cohn, entre outras forças, a possibilidade de enunciar com clareza a dispersão – do sujeito, da autoria, do poema, do amor, da amizade, das relações, enfim.

E, se a dispersão não enlouquece a linguagem é porque ela, arrepiando-a, pode conduzir à “unidade” ou à “fusão” – ainda segundo os termos com que Willer o leu. Daí que se admira na garota, em algum poema de amor, “a suave permanência / de tudo o que é volátil”, e se convidam os amantes a amar, em vez de na cama, no mato, “que é vário como deve ser o amor / que é novo a cada instante”. Um contraprograma que, insurgindo-se contra a cama, convida a combater a programação do amor e das relações afetivas.

O que parece organizar a calma com que se conduz o poema e o leitor no espaço da perdição é a proximidade com “quem já / conhece esses espaços: / pássaros onças outros / olhares de soslaio”. Aquilo que, antes de se saber, já se sabe, é como que o ready made com que muitos desses poemas se escrevem. Só que o já-feito agora não são os objetos manufaturados nem mesmo – a exacerbação deles – o texto produzido pelas máquinas digitais. Contraprogramaticamente, o já-feito o foi antes do homem, e a poesia, na cidade, convoca os saberes que, diferentemente da engenharia das cidades, não servem para a fabricação de uma coisa – como um poema – e sim para possibilitar um encontro, ou sulcar uma trilha pelo baldio das relações.

Noutro poema, “o amigo louco” recoloca de vez em quando a questão: “o que (como / o tempo) não / teve início / acaso existiria?”. Noutro poema ainda, o enigma se recoloca pela mínima paisagem natural: “entre rio e vento / a flor é um coágulo / ao amanhecer”. O tempo, como a flor – pergunta e coágulo – não foram programados: a presença de cada um excede a linguagem que os nomeia. Já se sabe. A poesia dispersa o bando comunitário pois no seu gesto de nomear a vida ela, em linguagem comum, instala o leitor em terreno baldio. Mas é por isso mesmo que, abandonando a comunidade, um eco se ouve na solidão da linguagem: “na beira desse descaminho / não há mais nenhum Virgílio / a nos guiar / mas veja: nada aqui é novo / nem mesmo o labirinto / e nunca estivemos sozinhos”.

Ao final de O sonhador insone, que reúne a poesia produzida entre a estreia, em 1994, e os últimos poemas até então publicados, em 2012, uma página negra registra a frequência com que algumas palavras apareceram ao longo da obra de Sergio Cohn. Tempo, chama, corpo, tudo, vida, vento – as que mais se repetiram. De 2013 até aqui, algumas coisas mudaram e vêm mudando na vida política e cultural, e à poesia se demanda difusamente uma resposta. Penso que, para Sergio Cohn, essa resposta passa longe não apenas de qualquer palavra de ordem, mas também de escrever carregando no bolso os jornais, o Google ou as ruas. Se, como se lê num dos “volteios”, “habitar é o que permite o movimento”, então o hábito desse poeta é despir-se no mato, voltar à cidade e nomear calmamente a nudez.

Poemas, poesias

Edições (1)

ver mais
Um Contraprograma

Similares


Resenhas para Um Contraprograma (1)

ver mais
Teoria literária
on 18/4/18


"um é o bote da surucucu o duro, imenso golpe explicitando todo intento outro, filhote de jararaca deixando quase sem aviso o mais terrível veneno"... leia mais

Estatísticas

Desejam1
Trocam1
Avaliações 4.0 / 1
5
ranking 50
50%
4
ranking 50
50%
3
ranking 0
0%
2
ranking 0
0%
1
ranking 0
0%

40%

60%

Adriana Scarpin
cadastrou em:
16/03/2018 11:23:37
Valtemario
editou em:
29/12/2022 09:48:00

Utilizamos cookies e tecnologia para aprimorar sua experiência de navegação de acordo com a Política de Privacidade. ACEITAR