Vozes

Vozes Ana Luísa Amaral


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Dois poemas circunscrevem o território poético em que transitam os textos deste último volume de Ana Luísa Amaral: o que lhe serve de abertura intitula-se “Silêncios” e o que o fecha, “Vozes”. Assim, no plural, silêncios e vozes remetem-nos, em primeira instância, a experiências concretas na relação miúda e cotidiana com os seres e objetos, lugares e momentos, emoções e afetos, que, não obstante, nos atingem de forma pontual e única / o fio mais afiado que punhal.

Mas, por outro lado, defrontamo-nos também com o silêncio e a voz, demarcadores de uma linguagem que se reconhece, antes de mais nada, como o lugar da falha, da falta, da incoincidência, e nele aceita instalar-se, exibindo-o, ao mesmo tempo que procura frestas por onde escapar. A inscrição minuciosa da busca desses caminhos, com os seus desvios, correções de percurso e becos sem saída, é não só um tema preferido, mas um procedimento constitutivo da poesia de Ana Luísa Amaral.

Para ele contribuem a violência operada sobre a sintaxe, por meio de elisões e suspensões, ou as alterações bruscas na dicção; para o mesmo fim, trabalham as revisitações de certos poemas, corrigindo-os, ampliando-os ou explicitando sentidos que antes tinham estado subentendidos ­— talvez.

Preferindo, contudo, deixar visível o que neles rasura, e insistindo igualmente no registro da sua própria hesitação ou luta, a poeta rejeita a forma mais discreta que a escrita (ao contrário da fala, que não pode apagar o impróprio) lhe permitiria. Assume, dessa maneira, para usar uma palavra que lhe é cara, a imperfeição como dado ineludível do existir e do dizer.

Além de retrabalhar os seus próprios poemas, revisita também textos de outros autores, às vezes com um grau alto de fidelidade, como na tradução de Rilke; outras, rasurando parcial ou mesmo quase completamente o texto original: reinventa, assim, a trágica história do mítico par amoroso, Pedro e Inês, ao pôr em cena, em tom burlesco, um casal contemporâneo de velhos com as suas mazelas físicas, perdido totalmente o fulgor que ele bem sabe ser doença / de imaginação. Reelabora ainda, na secção “Outras Vozes”, certos temas míticos da história portuguesa, a partir de perspectivas que lhe dita a consciência da modernidade, atenta às explorações de toda ordem: a das novas terras colonizadas ou a das mulheres enquanto protagonistas anônimas, silenciosas e muitas vezes vítimas da história.

A paisagem vulcânica dos Açores surge-lhe como um texto onde se pode ler o princípio / de tudo / como um quadro / negro. Mas, a visita à torre de Galileu (“Galileu, a sua torre e outras rotações”) induz o verso a buscar o avesso da criação (não por acaso avesso é também uma palavra eleita pela poeta, quem sabe pela afinidade etimológica com verso), projetando-a para daqui a cinco bilhões de anos, quando a Terra murchará como maçã / num sótão às escuras; o que sobrar de nós talvez, num acaso feliz, se reorganize para compor o andamento próximo:/ o quinto / movimento — sobre o qual, contudo, o poema silencia.

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Adriana Scarpin
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20/04/2018 15:38:52

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