Layla 07/01/2020Vocês já devem ter notado e vivenciado como os valores do mundo estão invertidos. Em diversos âmbitos, prega-se o ódio, no lugar do respeito; o egocentrismo, onde deveria haver solidariedade; a presunção, sobre a empatia. Pensando nisso, há uma situação recorrente em nosso dia-a-dia: o fato de que, por diversos momentos, tentamos ajudar alguém, e esse alguém acaba por não valorizar a mão que lhe foi dada, desprezá-la ou semelhantes circunstâncias. Por isso, já ouvi diversas vezes que sou idiota, que não devia ter auxiliado e me compadecido. Aposto que vocês também passaram por algo parecido – e se não passaram, acreditem, ainda vão passar.
Vi em O IDIOTA – e, no caso, o "idiota" em questão se chama Liev Míchkin –, essa inversão de ser bom em cada página impressa. Míchkin é um personagem que precisa de certa introspecção para ser totalmente compreendido: ele viveu por muitos anos em sanatórios e seu contato humano foi básico, senão mínimo. Liev carrega consigo uma inocência e bondade que são intrínsecas e inabaláveis, além de uma sabedoria que se faz perceptível ao leitor, mesmo pelos quadrinhos, mesmo através de suas pouquíssimas falas. Uma cena que muito me marcou, foi quando ele enxergou, em um simples desenho, a tristeza de uma das personagens mais intensas do livro, quando os demais, ao olharem para ela, viam apenas maldade e características semelhantes.
Míchkin tem um modo peculiar e particular de enxergar o mundo, o que acredito que seu passado tenha potencializado. Sua pureza esmagadora chega a ser engraçada, em alguns contextos, de tão incomum e, ao mesmo tempo, tão singular e bonita. Há uma inteligência emocional quase concreta no protagonista, e sua falta de filtros faz com que ele aja e fale de acordo com o que sente e vê. É assustador e impressionante vê-lo interagir com os outros personagens na HQ, pois você anseia por saber o que Liev está pensando, há curiosidade em entender o quê, e como ele, de sua forma única, está observando. Embora, combinada a essas sensações, há quase uma necessidade de protegê-lo, de impedi-lo que aja de acordo com sua personalidade, já que sabemos que, ora ou outra, ele vai sofrer por ser do jeito que é.
Há ainda, nesta edição, um prefácio. A primeira vez que li, antes de começar a leitura, estranhei como um personagem pode ter semelhanças tanto com Jesus, quanto com Dom Quixote. Foi impossível, para mim, realizar tal arranjo. Fico surpresa, e até um pouco encantada, em dizer que consegui enxergar no protagonista tais essências.
É extraordinário, durante a leitura, como Dostoiévski consegue ser atual, mesmo com um HQ baseada em um livro escrito por volta de 1867. O espírito do tempo daquela época ainda está muito vivo na modernidade e nas discussões que são levantadas diariamente. O IDIOTA é uma obra de séculos atrás, entretanto há em suas folhas, o retrato do abuso sexual infantil e suas consequências, a demonstração de como é a epilepsia – e de como Liev é mais do que um epiléptico, que é, acima de sua doença, uma pessoa que sente, pensa e vive –, e alguns comentários críticos sociais que, de seu modo característico, Míchkin faz. Compreendo que, pela recriação quase sem falas que André Diniz fez, o destaque que os poucos diálogos existentes têm é enorme. Porém, é inegável a enormidade da fala de Liev, quando recorda a execução de um homem na guilhotina que assistira (e tentara impedir) quando era mais novo:
“A execução de um criminoso é um crime mais grave do que o crime cometido por ele.”
E o trabalho de André Diniz é sublime. Os desenhos têm traços fortes e são impactantes na crueza em que demonstram as emoções. Como já dito anteriormente, a pouquidade de diálogos e falas escritas, tornou a leitura do quadrinho mais intensa. Só consigo compará-la, para a compreensão de vocês, com a recente experiência de assistir ao filme UM LUGAR SILENCIOSO, ou então relembrar brincadeiras como Gato Mia, em que cobríamos nossos olhos e tínhamos de seguir nossos amigos apenas utilizando o tato e a audição. Há uma agudez de sentidos, uma intensificação de sensações. Ficou realmente incrível. Gosto muito de quadrinhos e mangás, adoro a mistura de falas e ilustrações. Contudo, O IDIOTA, com sua escassez de trechos escritos, dá ao leitor uma compreensão e visão muito rica. A edição é, por completo, sensacional! Os detalhes da capa, a qualidade do papel, as orelhas largas e o prefácio instrutivo e interessante, só complementam o livro.
É importante dizer que não conheço a obra integral de Dostoiévski. Sempre tive a vontade de ler outros livros do autor, como CRIME E CASTIGO e OS IRMÃOS KARAMÁZOV. Entretanto, sou uma leitora um tanto medrosa quando se trata de clássicos russos. Mas quando surgiu a oportunidade de ter esta edição de O IDIOTA em mãos, mesmo sabendo que era uma recriação em quadrinhos, hesitei em tomar a iniciativa de lê-lo. Até mesmo dei uns três passos mentais para trás, praticamente fugindo. Todavia, fico feliz que eu tenha arriscado. Valeu a pena, sem sombra de dúvida. Surgiu até a pequena centelha de querer ler o livro. No entanto, assumo que preciso amadurecer mais essa ideia.
Com o final da leitura, vendo o estado de Míchkin, tudo o que ocorreu, as suas poucas alegrias e muitas dores, e a tragicidade da conclusão... eu fiquei balançada. Sempre acreditei que, por mais que sejamos rechaçados como idiotas por muitas pessoas, não é o nosso modo de viver, de enxergar e de tratar os outros que deve mudar. Não somos nós os errados. São os outros. A pergunta final era sempre: que preço pagarei se eu mudar? Entretanto, com o término de O IDIOTA, a questão que fechou aquelas páginas – e continuou em minha mente por um tempo, persistente –, era: que preço pagarei se eu não mudar?
(resenha postada no blog GETTUB)