"Ela, Emilie, tinha uns amigos que meu avô considerava esnobes e altivos. Quando esses amigos se reuniam em casa para jogar gamão ou conversar e fumar narguilé sob a parreira do pátio, meu avô ficava calado, e seu olhar dizia que as visitas eram inconvenientes. Mas o velho não se importava quando Emilie citava com frequência dois amigos esquisitos e esquivos. Um deles era Armand Verne: “um homem muito imaginoso, com trejeitos de dândi e que já morou em Lisboa, Luanda e Macau antes de chegar a Manaus”. Armand Verne falava vários idiomas e era um estudioso de línguas indígenas. Em Manaus, empenhava-se em realizar um curioso trabalho filantrópico: insuflar (discretamente) os índios contra os padres e patrões e promover a cultura indígena. Para tanto, fundou a Sociedade Montesquieu do Amazonas, cujo lema era “educar para libertar”. Felix Delatour, o outro amigo de Emilie, era um bretão circunspeto, quase albino, que sofria de uma enfermidade rara: o gigantismo. Lecionava francês e, ao contrário de Verne, nunca fundou uma sociedade filantrópica ou algo semelhante. Os amigos esnobes de Emilie não me interessavam, mas Felix Delatour e Armand Verne aguçaram minha curiosidade."
Milton Hatoum, "A natureza ri da cultura", in "A cidade ilhada"
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