Cantigas Cotidianas

Cantigas Cotidianas Lucas Alvim


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Cantigas Cotidianas





O TRAÇAR DE UMA FRONTEIRA ENTRE A CARNE E A PELE
Airton Souza

É o poeta Floriano Martins quem nos alerta, em seu Escritura Conquistada, que os poetas, assim mesmo impassíveis consigo mesmo e o mundo, mantém uma intrínseca relação de si com os dias, pois, “los poetas estamos todos em cada uno de nuestros versos. La poesia representa el instante absoluto de nuestro encuentro con la vida, escenario de la desnudez y vértigo de nuestro encantos”. A partir da compreensão dessa relação nuestro encuentro con la vida é que é possível sentir a poética existente nesse livro.
Aqui, nesse novo livro de Lucas Alvim está o testemunho fatal dessa assertiva de Floriano Martins. É o poeta e as coisas, diante dos dias, formando a justaposição palavrial, não na busca de reconfortar as engrenagens, ou a máquina como um todo, mas, sobretudo, de problematizar poeticamente o que estar posto para além da pele e da carne. É justamente nesse ínterim que reside os gestos, depois de vencida, em parte – porque nunca se vence por completo - a batalha com a folha em branco. A poesia talvez seja para Lucas Alvim a fronteira da minha carne com minha pele e vive a trazer a ele as substâncias dos espaços impossíveis, na serventia de nos atingir por inteiro, mesmo que tenhamos flores nos dentes.
Cantigas Cotidianas e outros poemas, de Lucas Alvim, é a continuação de uma poética que cada vez mais se faz necessária nesse tempo, onde a poesia sulca, no embate eterno, em um espaço no pretérito mais que imperfeito, na intuição de abrir frestas no coração dos seres humanos e, embandeira o clima imutável, a que alude o poeta e, principalmente para que não fique somente o labor das angústias. Para isso é que não deixo apenas ossos, escondo-os em decomposição da composição de minha permuta com o mundo, seu som d’água, seu sufoco mergulho.
A primeira vez que tive contato com a poesia de Lucas Alvim através da leitura dos livros Exergia (Prêmio LiteraCidade de Literatura 2014 – 2º Lugar, na categoria poesia), promovido pela Editora LiteraCidade e o maço de março, também publicado pela Editora LiteraCidade, já era perceptível que sua tarefa era arar o chão verbal e arrancar de um fosso abismal a língua incrustada no dorso do absurdo. Dessas leituras e com uma caminhada que já margeia quase dez anos escrevendo poemas, o poeta Lucas Alvim parece traçar um panorama irremediável para com a sua poética. Entre suas buscas e obsessões está o jogo com a palavra e, dentro desse limiar reside à relação poeta e mundo para que assim ambos coexistam não pacificamente.
O poema “Minhas andanças”, que abre o livro Cantigas Cotidianas e outros poemas possui uma dimensão catastrófica de um “eu” sempre a apontar para o “nós”. É o mais longo e coube dentro de cada palavra certeira uma tragédia delirante como se o poeta estivesse pintando uma tela surrealista, ou esculpindo delírios na pedra, ao mesmo tempo em que parece quase grita dentro de nós todo esse mar estômago. É a marca de uma poética que se quer cada vez mais densa, adentrando esse denso rio que é a linguagem.
No entanto, é preciso assinalar que o poema “Minhas andanças”, nos parece mais um livro dentro desse Cantigas Cotidianas e outros poemas, porque para além de tudo, esse poema com toda essa linguagem rompendo o habitual, assusta, como as imagens de anjos decaídos e suas peles revestidas de maldades, sugerem está protegendo uma antiga igreja gótica. “Minhas andanças” simboliza o avançar adentro de uma linguagem, que para Lucas Alvim, não terá mais retorno e será para sempre a procissão do vazio, que todos os poetas sempre sonharam em alcançar.
Quanto mais avançamos na leitura de Cantigas Cotidianas e outros poemas, mas, se adensa e nos corroí as imagens poéticas desse livro. Parece residir aqui uma força de metáforas colocando a linguagem em um estado de alerta e nossos olhos vão pouco a pouco calcificando todos os instantes que interpenetram nos versos. Para o poeta é somente a lição de quem aprendeu a recusar a enxergar os céus pelas suas friezas.
Não são somente palavras que Lucas Alvim faz reverberar em nós. Pois, é incrível e, não sei com que técnica, esse poeta fazer corroer de forma dorida, alucinantes signos que são incalculáveis dentro da língua portuguesa. As palavras, em Lucas Alvim, urgem e todos os instantes entram em um transe de pinceladas alucinantes. É como se a cada estrofe passasse a vigorar em Cantigas Cotidianas e outros poemas um novo poema tão imutável quanto essencial dentro do poema em que se encontra circunscrito.
Nesse livro emerge a lição que nos legou o grandioso poeta Manoel de Barros, quando este afirmou que a poesia é voar fora das asas, ou seja, a linguagem, alocada poeticamente, fora de seu estado habitual. Assim, em Cantigas Cotidianas e outros poemas cada sintaxe é a carne sacrificada da certeza. Dessa forma o poeta vai arando a cidade com o seus dentes e arrotando seus insetos, para definitivamente voar fora das asas e dentro de nossos sentimentos.
A pouca recorrências nos poemas de conectivos faz com que o livro a cada poema cresça rumo ao desespero almejado pelo poeta. Não à toa e de forma frenética torna a linguagem musical e plástica, mas faz ainda mais brotar dentro de cada um de nós a vã busca pela linguagem e seu acesso. Inúteis tentativas, essa de querer o sentido primeiro das coisas poéticas.
Quando se intenta abrir uma porta não se escancaram as janelas. Porque para o poeta só o dilúvio de mareciência me pote porá a explicar. Isso nos impõe justamente na principal lição da poética, onde mais do que buscar entender as metáforas, vale o sentir. Foi assim mesmo que no período clássico as principais obras forma produzida, pelo sentir.
Lucas Alvim faz com que sua linguagem voe fora das asas, dentro da carne e antes da pele. Toca, palavrialmente, o mais imune dos lugares para assim mesmo, sem ênfase ou reticências, compor uma linguagem poética. Seu voo atinge o mais recôndito espanto dentro de nós, porque sua poesia vem agora mesmo nos elucidar, mais que nós a elucidamos.
Talvez estejamos perante um dos mais belos e inquietantes livros de poemas escrito nessa década e, esse poeta que completa quase dez anos escrevendo, enfim, alcançou o cume e perdeu a rota de retorno. Ganhou de vez seu espaço navegando lá com o seu barco de papel escriturado em maço de março. Os poemas de Cantigas Cotidianas e outros poemas para deter beijo deleite o passo marulho dos peitos derramados rasga o tempo e renova a linguagem e as suas cargas sentimentais que possuem a razão compreensiva.
Com tudo isso, Cantigas Cotidianas e outros poemas não é um livro de aparências. Lucas Alvim descobriu os entrelaçamentos das palavras, remontando verso a verso a dramática lírica que atravessará os dias e, de rosto lavado e lavrado o poeta e sua poética subjugará as superfícies vegetais e todas as dúvidas necessárias a não saber se se podem escutar a elétrica dor dos ossos que ramificam rosas vermelhas/ Deixo meu ventre para satisfazer os vermes.
Perante esse novo livro de Lucas Alvim, mas uma vez é preciso colocar em ênfase a velha pergunta drummondiana: trouxeste as chaves? Pois, nesse Cantigas Cotidianas e outros poemas a palavra tem mil faces secretas depois, sob e sobre as faces neutras. É para nós a casa sem portas ladeada por teias que estão na exata dimensão de pedrar silêncios. E, ainda assim descobriremos depois que havia mais cinzas do que folhagem e, a poesia não servirá de consolo à vida.
Essa é a liberdade de sobrepor forma; De borda e bordar no liso frio vidro, um beijo espelho, um banho de reflexo prontamente estendida a lacera nossa existência. Uma vez que, Cantigas Cotidianas e outros poemas foi cerzido na raiz de uma língua que vencerá os dias e por isso que poeta Lucas Alvim finaliza sua saga escrituramente gritando:
Quem estou querendo enganar,
fábrica,
Sou eu, em alto mar
refém de uma beleza
encontrada por mim.

Uma beleza que poucos poetas até esse exato momento conseguiu encontrar. Cantigas Cotidianas e outros poemas tem uma poética do espanto e Lucas Alvim parece ter visto em seus pesadelos o local em que estão dependuradas as chaves drummondiana, não à toa ele continua a desenhar no escuro e essa é a sua geografia exata ao qual ele lança-se sem pudor ou piedade para nos ferir o corpo com a marca da compaixão. Isso me faz lembrar novamente Floriano Martins, que escriturou que: “cabrá al poeta rescatar el sentido primeiro de las palavras, así como al crítico iluminar los territórios fundados por la poesia”.
Dessa forma é que o poeta Lucas Alvim e seu livro Cantigas Cotidianas e outros poemas construíram um imenso abismo que servirá para alimentar os dias.

Em Marabá, nesse tempo sem chuvas e de rios secando, é outubro de 2017.

Airton Souza – é poeta, professor, ativista cultural e leitor. Possui vinte e sete livros publicados. Vencedor de alguns prêmios literários, entre eles o III Prêmio UFES de Literatura, IV Prêmio Proex de Arte e Cultura e o Prêmio Dalcídio Jurandir 2013. É licenciado em Letras – Língua Portuguesa, pela Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, licenciado em História, pelo Centro Universitário Leonardo Da Vinci e, é mestrando em Literatura, pela Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará – UNIFESSPA.

Literatura Brasileira / Poemas, poesias

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14/11/2017 14:56:26

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