É possível estabelecer dois grandes modelos de organização médica da história ocidental: um suscitado pela lepra e tornado prática habitual no Medievo; outro, pela peste e implantado a partir do século XVIII. O modelo da lepra baseava-se na exclusão imediata, na expulsão do espaço comum para um espaço obscuro e sombrio, o único possível para o leproso: aquele onde ele se misturava aos seus iguais, aos outros leprosos. Ao contrário, o modelo da peste, consiste em distribuir os indivíduos, isolando-os, individualizando-os, vigiando-os; aqui, a exclusão dá lugar ao internamento. Modelo que surge concomitante ao nascimento da medicina social, tipicamente urbana, fundada na higienização do espaço público.
A leitura do livro de Jane Felipe Beltrão, que tem por objeto a epidemia de cólera de 1855 na Província do Grão-Pará parece indicar, por sua vez, que se é verdade que esses dois modelos acima indicados não perderam a sua validade e possuem ainda valor explicativo, também é verdade, por outro lado, que a assunção do segundo, não eliminou completamente os elementos que concediam ao primeiro, as justificativas para a exclusão. Não se assemelha o colérico ao leproso, no imaginário social, na medida em que a degradação física, num e noutro caso, remetem ao medo do flagelo divino? As sucessivas imagens da "animalização" crescente do colérico não se assemelham ao estado igualmente "animal" do leproso, "representado" na perda de suas extremidades, que passam a dificultar a postura ereta que caracterizaria o ser racional, dotado de uma alma? Não são essas mesmas imagens de "animalização" que nutrem o imaginário social relativo à Aids? E, em todas elas, não se repete o mesmo terror, o mesmo pânico, a mesma angústia? Em todas não se parece ser a face horripilante da própria morte, que se dá a conhecer, ao tomar posse de um corpo ainda vivo? Em todas não se aponta, igualmente, para o fracasso de toda intervenção médica que separa corpo e história, corpo e memória, corpo e imaginação?
Se o ofício daquele que se dedica à filosofia o constrange sempre a colocar questões, então pode-se dizer, com alguma presunção, que o bom livro é aquele que lhe suscita incessantemente questões, ao qual não consegue ficar indiferente e cuja leitura acaba por tirar-lhe o sono, para retomar uma antiga fórmula, segundo a qual a atividade de pensamento exige a permanente vigília. Mas, um bom livro de História talvez seja também aquele que se parece com as boas histórias policiais, onde tanto seu autor, quanto o leitor, juntos, tentam desfazer uma trama. Assim como neste livro, que só suscita questões e tira o sono porque sua trama é extremamente bem tecida.
Ernani CHaves
Professor do Departamento de Filosofia da UFPA
Biologia / História do Brasil