Condições do Tempo

Vagamos despercebidos pelo mundo até que uma pessoa, apenas uma, nos enxerga, e voltamos à vida, inchados de realeza.

“É sempre difícil encontrar o momento inicial, o quê deflagrador de uma história cuja importância só será conhecida em um longínquo depois, já instalado no campo linear de nossas biografias. O quase nada dos primeiros movimentos é apenas sombra, não possui volume nem extensão o bastante para a estrutura mental fazer registro. Muito simples, nosso cérebro não reconhece os sinais sutis de uma pré-história, os elementos irônicos a maquinar um futuro. Escapa-nos a faísca mínima que irá gerar o grande incêndio. Assim, toda primeira lembrança é uma peça de ficção, um zero simulado, uma abstração inchada na consciência, que se adensa até oferecer o fruto já formado. No instante curto entre nascimento e morte, experimentamos um máximo de desatenção. É sobre essa desatenção que quero falar agora.
Mesmo parecendo frio, o toque na campainha marcará o meu começo. Limpo a garganta, alinho uma gravata imaginária e, empurrado pela pauta de racionalizações que formulei durante a semana, encaro o retângulo discreto à direita da porta. Basta um dobrar de ossos para a mão espalmada atingir a altura do botão que, acionado, irá suspender meu ruminante estado de controle e atirar-me aos leões do acaso. A partir daí terei de obedecer a um roteiro desgovernado, feito de improvisos e reações por vezes contrárias aos meus interesses. Talvez por isso meus dedos hesitem em fazer funcionar essa máquina do tempo. Tremem como se tivessem sido encarregados de dar corda ao relógio da Criação e duvidassem da seriedade do Criador. Podemos contar com ele?, me apontam, soldados incertos da inteligência do comandante. E num gesto que é mais uma resposta raivosa do que uma escolha, decido espetar meu point of no return no calendário. (...)”


Este conto faz parte da Coleção Identidade. Saiba mais em www.amazon.com.br/colecaoidentidade

Contos