"Não sei se o fascínio exercido pela poesia de Carlos Drummond de Andrade sobre cada um de nós não se explica, também, por sua faculdade de renovar-se sempre, mantendo-se, ao mesmo tempo, rigorosamente fiel a si mesma. Cada novo livro dele é uma agulha imantada apontando, nítida, o pólo magnético, embora o barco de poeta singre ondas encapeladas, veja-se varrido pela borrasca e pelo vento. Drummond, assim, cristaliza na forma mais pira perplexidades e contradições, o espanto, o amargo gosto do tempo. Implacável, a ponta de diamante do verso corta a carapaça vítrea que nos isola. E ao violar a fronteira mistificadora que estiola aquilo que cada uma tal vez tenha de melhor, os poemas dele detêm a fórmula reveladora do real, desse real que a névoa do cotidiano obstina-se maliciosamente em ocultar. Terá o poeta consciência desse dom mágico, ou estará falando de si mesmo ao declarar num dos poemas deste livro que 'o serralheiro não sabia / o ato de criação como é potente / e na coisa criada se prolonga, / ressoante'? Mistério maior o do verbo ao longo da obra de poeta altamente inspirado como é Drummond. Dir-se-ia que é com as palavras que o poeta se lacera e com elas mesmas fecha os ferimentos, como sabia milagrosamente fazer a lança do guerreiro homérida. Assim, após ter vastamente curtido a mágoa férrea e secreta da cidade em que nasceu, após ter escalavrado a alma com o espinho ressentido, o poeta agora redime o passado e se redime, salva num poema de pungente beleza toda a pureza da infância, que reemerge no homem maduro fluindo em melodia: 'doce canção de Itabira'. Por isso falo de fidelidade e surpresa irmanadas em sua poesia. As obsessões nela se metamorfoseiam, a amargura tem o condão de engendrar o gozo, ou vice-versa, tudo nela é 'lucilação do transcendente', teorema drummondiano para reexplicar Ouro Preto, outra cidade que habita seus espaços interiores, ou que ele impenitentemente 'fazendeiro do ar', habita, 'livre do tempo'. A dupla polaridade do poeta denuncia-se, ainda, em outro plano. Sempre gouve nele, além da vertente lírica, tradução do eu em sintagmas irônicos ou graves, meditação acendrada no âmago da glória e da tragédia de amar, sempre houve, dizia, acasalada a essa lavra de cinza e ouro, a indesmentida vocação de poeta público. O 'gauche' que há nele nunca se negou a falar por esses outros, cuja 'gaucherie' é tão vincada, que nem saberiam declinar o próprio drama. Neste volume o poeta público é que fala em 'Faveiro Nacional", árduo libelo contra a inenarrável orla de miséria, fezes, pus e esqualidez que é o hediondo colar de nossas metrópoles. Nunca entre nós a indignação soube exprimir-se com tanta veracidade, tanto vigor, tanta lucidez poética. Mas por que tanta algaravia, se 'Corpo' está em tuas mãos, leitor? Toma e lê" - Nogueira Moutinho.
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