Cupido: cuspido, escarrado

Cupido: cuspido, escarrado Estrela Ruiz Leminski


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Cupido: cuspido, escarrado





não é por ela ser filha de peixe ou de dois peixes não dos que se inspiram mas dos que respiram a poesia a cada hora do segundo dia do minuto sempre isso talvez a ajude e atrapalhe ao mesmo tempo mas seu jeito para a brincadeira é sério está na cara vê-se dos hai kais da infância ao jorro transparência do final do livro a intimidade o trato o tato a convivência natural com as lâminas flechas e plumas da expressão verbal aprimorando os sensos interpenetrando a vida e vice-versa a cada verso é claro a gente identifica aqui leminski alice ali piscando o olho cúmplices mas desse ninho veio um jeito dela um ovo de linguagem própria genuína e sem ingenuidade rima imagem ritmo sonoridade sem perder o tom de quem conversa solto que atravessa todo esse cupido como se cada poema completasse o outro articulando partes de um só corpo veias nervos ligamentos de um discurso inteiro que percorre como um fio enreda os temas com frescor que encanta por falar tão franca e claramente seja do que for de amor ou de linguagem corpo ou paisagem capaz de belezas como essa cidade não me cabe” “o teu cansaço machuca a noite” “se em cada coisa que eu toco / fica o jasmim” aqui não há disfarce tudo é de verdade e se isso vem de um modo meio adolescente de dizer as coisas acho que os poetas de verdade vivem à vontade nessa velha adolescência para sempre gosto da expressão direta “tirem a poesia / da poesia… / é provável que nem faça falta” e também dos poemas chegarem sem título rasgando as páginas com seus ruídos prenhes de sentidos integrados como aquele “labirinto” se fragmentando e anagramando em “tino” “íntimo” “finito” “fictício” “ínfimo” “ritmo” “estímulo” “espírito” gosto do soar “tumtum” do coração do “deixe estar” “e olhe lá” “você se toca?” gosto da onomatopaica versão de bashô que injeta novidade à tradição do já tão traduzido e clássico hai kai da rã no tanque dágua gosto do “o que quer quando me olho?” jogos paradoxos que pintam dando uma rasteira “eu vim aqui partir” “talvez eu goste mais de mim / no que eu sou pra você” “…fazia muito mais falta / quando estava comigo” gosto do cuidado com a síntese “infelicidade: só o teu cachorro” “o teu saldo é a saudade” “cintura de pilão / sentimento de pilatos” e gosto mesmo muito do que diz “eu não / eu faço poesia / com alegria” como respondendo à fala de um alguém suposta nesse “eu não” que dá mais graça e força pra o que diz depois com que me identifico e identifico aqui em todo esse cupido cuspido escarrado o ato de criar nutrindo de alegria mesmo se expressar a dor como a poesia renovando a vida ao renovar os usos das palavras de todo dia.



Arnaldo Antunes


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