spoiler visualizarRenato 21/04/2018
Escrevendo sobre um mundo sem o outro
Notas de leitura de ‘O engate’, de Nadine Gordimer (2001) - com spoilers
Não é infrequente que a Academia Sueca premie autores que escrevem sobre os conflitos do mundo chamado de pós-colonialista, com todas as limitações que o termo traz. O mundo em que vivemos nesta primeira metade do Século XXI, na verdade. E um pouco antes.
Não é correto pensar em um movimento, estilo ou gênero pós-coolonialista, não só pela diversidade, mas porque este mundo é aquele do pós-segunda guerra mundial, e que traz muitas evoluções de 1945 a 2018. Sem contar a diversidade de estilos de escrita. Chamar uma série de livros de pós-colonialistas é somente uma tentativa de discussão de temas próximos, ainda que desiguais.
Dentre os autores laureados abordando estes temas estão Jean-Marie Gustave Le Clézio (premiado em 2018). Muitos de seus livros mostram relatos ou viagens por países do terceiro mundo, em geral africanos, retratando um mundo distante do conforto dos grandes centros do primeiro mundo iluminado. Seu romance 'Deserto' é particularmente tocante, onde Le Clezio narra o deslocamento e a exclusão do recém-inserido neste mundo. Com uma linguagem cheia de figuras, quase poético, Le Clezio aborda a nova ordenação violenta, tribal transformada em étnica, e a exclusão de povos que ficaram sem lugar para existir num mundo repleto de liberdade
John Maxwell Coetzee (premiado em 2003), mostra o pessimismo do mundo pós-apartheid. Ao nos iludir aparentemente relatando um caso de assédio, ele na verdade nos conduz à conclusão de que o mundo após a conquista de direitos que ele mesmo lutou para existir teve melhores, ams ao invés de encvontrarmos a utipia, criamos novas formas de violência. Ao se ler com mais intensidade as entrelinhas, percebemos que Coetzee na verdade compara simbolicamente as formas de violência do Apartheid, racial, econômica e intelectual, com a britalidade física e primitiva do pós-apartheid. Uma transição e inserção feitos de forma caótica e injusta, gerando uma sociedade com valores muitas vezes não civilizados. Coetzee nos parece pessimista e descrente em 'Desonra', e como resultado defende o direito dos animais, grandes vítimas desta espécie humana pouco destinada a uma convivência harmônica entre os seus iguais e com a natureza. É o refúgio de sua esperança.
Vidiadhar Surajprasad Naipaul (premiado em 2001) é o mais controverso, nascido para a polêmica. Propositalmente ele pouco fala do dominador e de seus rastros. Ele prefere falar da cultura do dominado. As razões de sua aceitação da dominação e de seu fracasso para promover uma transição mais justa. 'Uma curva no rio' talvez seja o mais tocante de seus livros reveladores e inquietantes. politicamente. Naipaul é inclassificável, apesar de qualquer ideia que como cidadão venha a expressar. Em seu livro, não há clima nem cultura para reconstrução de um país quando não há vontade nem cimento cultural para a agregação de pessoas em torno de um ideal comum. Não se trata somente do dominador.
Nadine Gordimer (premiada em 1991) escreveu muito sobre o apartheid, sobre a luta contra o espírito do colonizador branco, e ganhou o prêmio Nobel talvez muito em consonância com seu posicionamento, 1991 foi um ano em que Mandela e o apartheid eram assunto muito forte. Em "O Engate" ela mostra outro mundo, quando o apartheid já se foi e ela enxerga um mundo mais próximo a Naipaul e Coetzee. A segregação existe, é forte, mas já não é institucionalizada. Mas aqui também ela tem o pessimismo ao mostrar que derrotar um opressor é um pouco uma troca de injustiças (as novas menos cruéis, certamente), não uma solução definitiva.
A linguagem que Gordimer decide usar usa um narrador em terceira pessoa objetivo r seco, com natracoes indiretasnlicres de forma que o leitor sabe o que os personagens sebtem, tudo isto de uma forma paradoxalmente ausente. O leitor sentenalgumnestranhamento. A acao e fluida endireta,!facil, mas ele se sente fora de lugar. Uma grande habilidade de Fordimer, porqur na verdade seusnpersonagens estao fora de lugar. A linguagem reflete fielmnete o sentimento de Ibtahim e Julie.
O enredo poderia ser um Romeu e Julieta transcultural. Ibrahim (Abdu) é um imigrante ilegal, pobre, muçulmano e negro e Julie uma rica filha de banqueiros brancos na Africa do Sul protagonizam onde o amor parece ser apenas uma ilusão da esperança. Distantes de uma paixão, mas sem nenhuma insinceridade, são descritos numa linguagem simples e fácil, mas sempre distante. Seu romance poderia estar repleto de conflitos emocionantes com a família, mas estes só aparecem no limite suficiente para garantir a verossimilhança da narrativa.
O embate é sempreo conflito com a a imagem do outro. Inicialmente Julie se decepciona com seu pai, que não aceita sua escolha, e com seu país, incapaz de fornecer visto para Abdu. O casal rompe as amarras e contra a vontade dele, derrotado, vai morar no miserável e seco pais arabe de onde Ibrahim fugiu. Tanto na África do Sul quanto no inominado país de origem Ibrahim é um homem sem lugar, apesar dos chamados da raiz para seu retorno. A tradição simbolizada pela mãe, a herança oferecida pelo tio. Ainda que incontente, Ibrahim não deseja o amor que sua cultura lhe oferece. Quer sua forma de ser. Na África do Sul era criminoso, ilegal, negro, pobre. Indesejado. No seu país é desejado pela familia, ainda que cobrado a se conformar. Ibrahim deseja o que imaginma ser no ocidente. Liberdade para escolher, para ser, ainda que sem dinheiro para ter a possiblidade de fazer escolhas livres. Ibrahim quer a vida do outro.
Julie também deseja o que imagina ser a vida do outro. Deseja o que é idealizado. Ela estava deslocada em seu país porque nao concordava com os valores e a injustica. Com a a segregação. Seu amor escolhido não era uma coincidência ou um capricho do coração. Todo amor deve ter um motivo subjacente, irracionalidade seria o que Julie não conseguia entender. Sem hesitar, ela encarou a ruptura com a família e seu destino fácil rumo a uma viagem a um país estranho, voluntariamente cedendo a miseria, acultiracao e desprezo. Sua nova vida acabou por se tornar um eterno estranhamento e segregação. Por mais que quisesse, jamais seria uma muçulmana de nascença ou uma igual. Ela parece deslocada e insatisfeita durante toda a narrativa. Desejando a vida do outro, mas decepcionando-se com a realidade da vida do outro.
Daí ser surpreendente o final. Quando tem a possibilidade de emigrar para os Estados Unidos com Ibrahim, ela decide ficar. Num país estranho, onde era tida como exótica e parte de uma cultura diferente, incompreendida. Mesmo não sendo completamente parte da familia, mesmo não tendo gerado um filho, mesmo sendo uma eterna pagã. Por outro lado ela tinha sido acolhida como esposa, ganhara uma ocupação que a satisfazia, educar, e tinha a possibilidade de fazer algo que lhe dava sentido. Ao confrontar a vida do outro, ela pelo menos parecia ter o desejo (inveja) da raiz que Ibrahim possuía, da cobrança pela entrega. Igualmente perdida em seu país natal, onde a cultura individualista a fazia isolada, optou pelo desafio da solidão descoberta ao lado do outro. Longe do marido, que transitoria ou definitivamente encarou sua vida de outro numa viagem sozinho para os Estados Unidos.
Junto desta narrativa mais explícita, havia o deserto, paisagem sempre simbolicamente procurada por Julie. O deserto é um dos enigmas do livro. Ele parece simbolizar o local de encontro do Eu, pois no deserto não há o outro. É a solidão, mas é o (re)encontro com a verdadeira identidade. O deserto, a solidão parecem ser o único refúgio para fugir da ilusão.
Gordimer escreve sobre o mundo da geração que vem após o verdadeiro mundo pós-colonialista. 'O engate' retrata pessoas aculturadas, sem ter ao menos lugar ou raiz, ainda que elas ressoem como a família de Ibrahim, deslocada de sua vontade. A perda de raiz nasce na eterna decepção consigo mesmo, com o desejo não realizável. O ideal é a vida do outro. O oriental deseja ser ocidental, o branco deseja ser negro. Férias na Rocinha é diversão para se viver a vida do pobre. O outro é uma utopia, porque seu lugar desejado de alguma forma já não existe. Existe o desejo do deserto, um lugar onde Julie não existe e ela se sente livre do outro. Talvez o deserto seja um símbolo da morte necessária para se sair da vida do outro, talvez um motivo para a decisão de Julie. 'O engate' nos passa a impressão de que o choque com a cultura do outro é inevitavelmente conflituoso, repleto de expectativas e pré-concepções. Repleto não só curiosidade, mas de paixão e inveja, sacrifício. Mas não há saida, os outros sempre serão os outros e talvez tenhamos nos perdido de nós mesmos. O mundo desenraizado é um mundo de judeus errantes, que durante séculos não tinham pátria e ao mesmo tempo tentavam se conformar aos hábitos de pátrias estranhas, sempre sendo vistos de lado. Não há respostas no livro de Gordimer, porque elas estão sempre em outro lugar, mesmo quando achamos que as encontramos. O mundo tradicional, em extinção, tornou-se uma ilusão, imaginação de afeto e raiz como nunca foram, pois ainda que sem as malícias do mundo do capital, também era feito de seres humanos com todas as suas mazelas. O que deveria ser desejado é a mudança, não a ilusão. A inclusão não é tão simples quanto muito se idealiza, simplificando a injustiça a uma questão de abraço, ou de intenção.