Rodrigo | @muitacoisaescrita 04/02/2020
Questionador e visionário
Escolhi, antes de resenhar este livro, ler outras obras de bell hooks. “E eu não sou uma mulher?: mulheres negras e feminismo” é seu livro de estreia e, em “Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra”, ela olha para trás, vendo seu primeiro livro como fruto de sua necessidade de autorrecuperação, de entender a realidade de mulheres negras nos Estados Unidos, a fim de fugir das normas colonizadoras de uma sociedade supremacista branca e machista.
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Em “E eu não sou uma mulher?” – dividido em 5 capítulos: 1) Sexismo e a experiência da mulher negra escravizada; 2) A desvalorização contínua da mulheridade negra; 3) O imperialismo do patriarcado; 4) Racismo e feminismo: A questão da responsabilidade; e 5) Mulheres negras e feminismo –, bell hooks volta à história dos EUA para compreender a realidade e a posição das mulheres negras. A normatização do homem branco, sua universalidade, é denunciada, por exemplo, em “Quando falam de pessoas negras, o foco tende a ser homens negros; e quando falam sobre mulheres, o foco tende a ser mulheres brancas” (p. 27); nesse sentido, hooks denuncia, também, a subalternidade das mulheres negras, que não são homens nem brancas. Antes de denunciar o racismo presente nos movimentos feministas – dominados pelas mulheres brancas com privilégios de classe –, hooks descreve a experiência de ser mulher nos navios negreiros, mostrando o estupro como método de controle e reafirmação de mulheres negras escravizadas como objetos e mercadorias, tendo em vista que a mulher negra era vista como “cozinheira, ama de leite, governanta comercializável” e “por isso, era crucial que ela fosse tão aterrorizada a ponto de se submeter passivamente à vontade do senhor, da senhora e das crianças brancas” (p. 44). Mulheres negras escravizadas eram obrigadas a desempenhar um papel “masculino”, o que fez muitos historiadores – brancos, rs – pesquisarem acerca da emasculação de homens negros, quando, na verdade era uma masculinização de mulheres negras, visto que, por exemplo, “qualquer mulher branca forçada pelas circunstâncias a trabalhar no campo era considerada indigna do título ‘mulher’”. Mulheres negras exerciam todos os trabalhos que fossem designados a elas, enquanto homens negros resistiam, por ser “de mulher”. Nesse sentido, mulheres negras não eram vistas como mulheres, nem tinham sua feminilidade valorizada, como no caso de mulheres brancas.
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Mulheres negras, além de serem estupradas pelos senhores escravagistas, trabalhavam como “prostitutas” (raramente recebiam compensação pelo uso de seu corpo, então esse termo é inadequado), quando, na verdade, eram estupradas e os senhores recebiam todo o dinheiro. “Estupro” era somente com mulheres brancas. Na lógica escravagista, negros e negras eram mercadorias, produtos – não poderiam, portanto, ser “estuprados” pelo dono.
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A imagem da mulher negra foi moldado a partir de esteriótipos racistas, sexistas e misóginos. A devassa, a prostituta, a mulher raivosa, a mulher que fala alto, que compra brigas, a mulher sexualmente livre com um corpo convidativo, etc. “Casada ou solteira, criança ou adulta, a mulher negra era um alvo suscetível para estupradores brancos” (p. 99). “Mesmo que uma mulher negra se tornasse advogada, médica ou professora, era provável que ela fosse rotulada, por brancos, de meretriz, prostituta” (p. 102). hooks desconstrói, também, a tese do matriarcado, uma tese antimulher, baseado em esteriótipos advindos de uma cultura branca de tornar negativa a contribuição positiva de mulheres negras. Durante a escravidão, por terem aguentado trabalhos “de homem” (quando, na verdade, eram forçadas e obrigadas a fazê-los), mulheres negras passaram a representar uma “ameaça” à masculinidade dos patriarcas, pois ameaçava os mitos patriarcais sobre a natureza da diferença e inferioridade psicológica nata da mulher. A verdade é que “a maioria dos homens em uma sociedade patriarcal teme mulheres que não assumem os tradicionais papéis passivos e se ofende com elas” (p. 134).
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“As mulheres das classes alta e média que estavam na vanguarda do movimento [feminista] não se esforçaram para enfatizar o fato de que o poder patriarcal, o poder que homens usam para dominar mulheres, não é apenas privilégio de homens brancos das classes alta e média, mas de todos os homens em nossa sociedade, independentemente de classe ou raça” (p. 145). Homens brancos com poder de classe eram, no início do movimento feminista estadunidense, rotulados como “os” inimigos; ao denunciar isso, bell hooks evidencia a incapacidade de feministas brancas de enxergar o patriarcado como uma estrutura ampla e, ao mesmo tempo, a vontade de mulheres brancas de obter os privilégios desses homens brancos, não necessariamente de destruir as formas de opressão, bem como o próprio patriarcado ou o racismo, por exemplo. Em seguida, hooks enfatiza o imperialismo do patriarcado, onde homens se “uniram” a fim de estabelecer a supremacia masculina – um fato que comprova isso, por exemplo, foi o direito ao voto estendido aos homens negros, mas não, também, às mulheres negras e brancas. “Racismo sempre foi uma força que separa homens negros de homens brancos, e sexismo tem sido uma força que une os dois grupos” (p. 163).
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“O processo começa com a aceitação individual da mulher de que as mulheres estadunidenses, sem exceção, foram socializadas para serem racistas, classistas e sexistas, em diferentes graus, e que, ao nos rotularmos feministas, não mudamos o fato de que devemos trabalhar conscientemente para nos livrarmos do legado da socialização negativa” (p. 249). Ao longo do quarto capítulo, bell hooks denuncia o racismo velado – ou até mesmo explícito – no movimento feminista, “liderado” por mulheres brancas privilegiadas, que, muitas vezes, não abdicavam de seu lugar opressor e recusavam-se enxergá-lo. A negação nos espaços e o silenciamento foram “armas” para evitar mulheres negras nos círculos “feministas”. Ousaram, também, afirmar que a “maior preocupação” das mulheres negras era o racismo, não o sexismo, visto que elas já trabalhavam, logo estavam “libertas” (essa questão é retomada em “Teoria feminista: da margem ao centro”).
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O livro não possui notas-de-rodapé e, de acordo com hooks, isso foi devido ao fato dela querer que o máximo de pessoas tivessem acesso ao livro e pudessem compreendê-lo com maior facilidade, para fugir do contexto academicista que exige palavras difíceis, um diálogo centrado para uma “bolha” e não para as massas. A linguagem do livro também é bem direta e pessoal, hooks defende muito bem seus pontos de vista e trás bastantes referências para fazê-lo.
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