spoiler visualizar.Igor 16/04/2024
Finalmente, depois de uma eternidade, consegui terminar essa não-resenha sobre ?O Exorcista?. Devo avisar que o texto ficou bem extenso, e tem alguns spoilers e citações (ficaram maiores que o planejado), especialmente pra quem não conhece o enredo do livro ou do filme. Avisos feitos, vamos lá.
Iraque Setentrional. Próximo à região de Mosul, uma série de tumbas antigas estão sendo escavadas por centenas de trabalhadores. Observando isso está uma figura alta, de cabelos brancos e olhos profundos, se não um tanto tristes. Procurava alguma coisa, sob o sol escaldante e o vento implacável do deserto. Após um tempo, de súbito ele se ergueu. Estava chegando. O som de uma matilha de cães selvagens era ouvido no vento. Sombras aceleradas na poeira enquanto o Sol começava a se por. O padre Merrin Lankaster finalmente teve certeza que seu velho inimigo estava se aproximando. Era hora de voltar para casa, para os Estados Unidos.
"Que nem o breve clarão efêmero de sóis explosivos que os olhos cegos mal registram, o começo do horror passou quase despercebido. De fato, comparado à histeria subsequente, foi esquecido e talvez nem relacionado absolutamente com o horror. Seria difícil julgar."
Saindo do Iraque, vamos então para Washington, D.C. Chris MacNeil é uma atriz de muito sucesso em Hollywood. Devido às filmagens de seu último filme, ela e sua filha Regan se mudaram para Washington. A casa era alugada, triste e fechada. Um prédio colonial de tijolos coberto de trepadeiras no bairro de Georgetown na capital. No dia primeiro de abril, na madrugada, a rua estava silenciosa. Chris, deitada em sua cama, estudava o roteiro e repassava as falas do diálogo das filmagens do dia seguinte, enquanto Regan dormia em seu quarto no fim do corredor. No térreo, dormiam em seu quarto Willie e Karl, casal de empregados de meia idade. Passava pouco mais da meia noite, quando Chris ouviu o som de batidas. Eram esquisitas. Abafadas. Recônditas. Ritmicamente agrupadas. Código estranho, transmitido por algum morto.
Ela prestou atenção por algum tempo, depois desistiu. Mas as batidas continuaram e ela não conseguiu mais continuar a ensaiar. Largou o roteiro em cima da cama e foi investigar. O som parecia vir do quarto de Regan. Enquanto caminhava pelo corredor, as batidas ficaram barulhentas, mais rápidas, mas ao empurrar a porta do quarto da filha e entrar no quarto, elas cessaram abruptamente. Regan dormia profundamente, naquele sono conhecido apenas quando se tem 12 anos. Chris cogitou que tudo tivesse sido uma brincadeira da filha, mas logo abandonou isso, não era da índole dela. Regan era tímida, acanhada. Será que tinha sido uma ilusão? Besteira, ela tinha ouvido as batidas. Provavelmente eram ratos no sótão. Enquanto pensava nisso, só então notou o frio. O quarto estava gélido. Dirigiu-se até a janela, mas estava fechada, e o aquecedor estava funcionando. Foi até sua filha, viu que seu rosto estava corado, transpirando de leve. Será que Chris estava doente? Sem chegar a uma conclusão, deu um beijo na filha e foi dormir.
No dia seguinte, as filmagens correram normalmente, mas à noite, enquanto dormia, acordou sobressaltada, com Regan lhe chamando: o quarto dela estava com umas batidas estranhas, ela não conseguia dormir. Após ir olhar o quarto dela, Chris acomodou Regan em sua cama, ficando com ela até adormecer. Cerca de dois dias depois, pela manhã, Regan lhe disse que seu amigo, o Capitão Howdy estava brincando com ela. Curiosa, Chris quis saber quem ele era, mas Regan se limitou a dizer que ele falava com ela de vez em quando, mas que não dava pra ser visto.
Assim tudo começou, com os maneirismos inocentes das brincadeiras de criança. Mas não tardou para Chris perceber que algo estranho estava acontecendo com sua filha: surtos de violência, uso de palavras que ela nunca tinha ouvido antes, alternados com períodos de sono quase comatoso. Preocupada, ela levou Regan para um médico, que insistiu que deveriam fazer exames e medicar para excluir qualquer problema físico antes de encaminhar a criança para um psiquiatra, dando início a um verdadeiro calvário para Chris.
Enquanto isso, somos apresentados ao padre Damien Karras. Filho de imigrantes gregos, ele entra para o colégio jesuíta ainda jovem; após ser ordenado padre, Karras entra para a faculdade de medicina, onde se gradua com louvor e se especializa em psiquiatria, sendo notórias suas pesquisas sobre rituais profanos. Dado à sua formação, ele trabalha como psiquiatra e conselheiros para os padres em Georgetown, mas esse é um cargo difícil para o jesuíta, que alimenta há tempos sérias dúvidas sobre a existência de Deus e o Diabo, entrando em uma crise de fé que o abala profundamente. E essa situação piora quando sua mãe falece, que o faz abandonar o cargo de conselheiro para apenas dar aulas, tudo isso enquanto é assombrado pela dúvida e dor.
Nesse meio tempo, a situação de Regan piorou dramaticamente e nenhum médico sabe mais o que fazer, para o desespero de Chris. Sem outra escolha, um dos médicos pergunta a Chris se ela professa alguma religião, a passo que Chris responde categoricamente que não. Ainda assim ele recomenda, com muita dificuldade, que ela busque um exorcista. Chris então recorre ao padre Karras, que embora recuse no começo, aceita visitar Regan, mas nada poderia prepará-lo para o que irá enfrentar.
É incrivelmente difícil falar sobre esse livro sem entregar detalhes importantes do enredo. William Peter Blatty construiu uma narrativa incrivelmente detalhada e interconectada, onde cada acontecimento, cada cena retratada, tem importância na trama geral e reflete de alguma forma no final. De algumas coisas vocês já devem saber, já que o filme "O Exorcista" é conhecido em todo lugar: Regan está de fato possuída, e um ritual de exorcismo é realizado. Mas o que leva a esse momento é uma jornada tão aterradora e fascinante em tantos níveis que apenas lendo para sentir todo o impacto do livro.
Grande parte desse impacto são os personagens. Chris MacNeil, apesar da fama e do dinheiro, é uma mulher gentil, louca pela filha, mas cujo casamento desandou por uma série de motivos, em especial uma tragédia de seu passado; seu sofrimento com a situação da filha Regan é palpável, construído de uma forma incrivelmente sensível e ouso dizer realista ante tudo o que está acontecendo. Damien Karras é fascinante para dizer o mínimo, atormentado por dúvidas e questionando a própria fé em muitos momentos, é um outro personagem fantástico. E o padre Merrin Lankaster, então? Não vou falar quase nada dele aqui, mas direi apenas que ele é genial.
Passei anos procurando um livro que realmente me assustasse, que me desse aquele frio na espinha (apenas curiosidade mesmo), mas sempre foi dificílimo encontrar algum que se encaixe nesses quesitos. No entanto, "O Exorcista" é diferente logo de cara: longe de ser algo baseado em sustos repentinos, o autor cria uma sensação de opressão, tragédia e até mesmo desespero a cada página, a cada cena minuciosamente descrita, e que apesar de em muitos momentos ser realmente perturbador, ainda é impossível desgrudar os olhos das páginas, e alguns exemplos disso podem ser as conversas entre Karras e o ser que está possuindo Regan:
"- Ah, compreendo. Bem, então, quem sabe não seria melhor a gente se apresentar? Eu me chamo Damien Karras - disse o padre. E você, quem é?
- Sou o diabo.
- Ah, que bom, ótimo - Karras acenou com a cabeça em aprovação. - Então já podemos conversar.
- Um pequeno bate-papo?
- Como queira.
- Faz muito bem à alma. Mas você logo verá que não posso falar livremente enquanto estiver preso a estas correias. Estou acostumado a gesticular. - Regan babou-se toda. - Como você sabe, passei a maior parte do meu tempo em Roma, meu caro Karras. Agora tenha a bondade de desatar as correias!
Que precocidade de linguagem e raciocínio, pensou Karras. Curvou-se para a frente na cadeira, com interesse profissional.
- Você diz que é o diabo? - perguntou.
- Garanto que sou.
- Então porque simplesmente não faz as correias desaparecerem?
- Porque seria uma demonstração de força muito vulgar, Karras. Por demais grosseira. Afinal de contas, sou um príncipe! - Um acesso de riso. - Prefiro mais a persuasão, Karras; o espírito de intimidade; a solidariedade comunitária. De mais a mais, se eu mesmo soltasse as correias, meu caro, estar-lhe-ia negando a oportunidade de fazer um ato de caridade.
- Mas um ato de caridade - retrucou Karras - é uma virtude e é isso o que o diabo mais gostaria de impedir. Portanto na verdade, eu estou ajudando você, se não desamarro as correias. A menos, lógico - deu de ombros, - que você não fosse de fato o diabo. E nesse caso, aí sim, talvez eu soltasse as correias.
- Mas como você é esperto, Karras. Só queria que o meu querido Herodes estivesse aqui para presenciar esse lance.
- Que Herodes? - perguntou Karras, franzindo os olhos. Estaria se divertindo às custas de Cristo, chamando Herodes de "esperto"? - Houve dois. Você se refere ao Rei da Judéia?
- Ao tetrarca da Galiléia! - Fulminou-o com um desprezo cáustico, colérico; depois, abruptamente, tornou a sorrir, aliciante, com aquela voz sinistra: Pronto, está vendo como essas malditas correias me transtornam? Me desamarre. Desamarre-me que eu conto o que vai acontecer no futuro.
- Hum, que tentador.
- É o meu forte.
- Ah, mas como vou saber se você é capaz de prever o futuro?
- Sou o diabo.
- Sim, é o que você diz ser, mas não quer me dar uma prova.
- Você não tem fé.
Karras sentiu um calafrio.
- Em que?
- Em mim, meu caro Karras. Em mim! - Uma espécia de escárnio, de malícia, brilhava no fundo daqueles olhos. - Tantas provas, tantos indícios no céu!
- Ora essa, qualquer coisa bem simples já servia - sugeriu Karras. - Por exemplo: o diabo sabe de tudo, confere?
- Não, Karras, de quase tudo... quase. Viu? Vivem dizendo que sou orgulhoso. Não sou, não. Mas afinal, que é que você está querendo, seu espertalhão?"
Mas não são apenas os diálogos entre os dois. Quando Karras pergunta a Merrin qual o objetivo que um demônio tem ao possuir alguém, o padre lhe responde, um tanto desanimado:
"- Sabe lá? - retrucou Merrin. - Quem é que pode dizer mesmo? - Pensou um pouco, e então continuou, sondando: - Mas eu acho que o objetivo do demônio não é o possesso; somos nós... os circunstantes... todas as pessoas desta casa. E acho... acho que a vantagem dele é nos levar ao desespero, a rejeitar nossa própria humanidade, Damien: a nos considerarmos, em última análise, bestiais; vis e putrescentes, sem dignidade, hediondos, indecorosos. Talvez seja esta a explicação: o sentimento de objeção. Porque eu acho que a crença em Deus não é, de modo algum, uma questão de raciocínio; eu acho que se trata, afinal, de uma questão de amor, de aceitar a possibilidade de que Deus seja capaz de nos amar...
[...]
Sacudiu a cabeça e por fim anuiu. - É nisso que eu acho que consiste o endemoniamento, Damien... Não em guerras, como alguns tendem a crer; nem tanto assim; e muito raramente em intervenções extraordinárias como esta... a dessa menina... dessa pobre criança. Não, eu o encontro com mais frequência nas pequenas coisas, Damien: nas malevolências absurdas, mesquinhas; nos desentendimentos; na palavra cruel e mordaz que vem espontaneamente à língua entre amigos. Entre amantes. Basta isso - murmurou Merrin, - e não temos necessidade de que Satã organize nossas guerras. Destas, nós mesmo nos encarregamos... nós mesmos..."
Não sou religioso. Minha criação foi católica, mas passo longe de qualquer profissão de fé ou algo do tipo, apesar de respeitar e achar a religião como um todo um tema de estudo incrivelmente fascinante. Partindo disso, os horrores presentes na mitologia judaico-cristã (apesar do Islamismo ser semita, ele tem muita coisa das antigas crenças dos povos do deserto, por isso não o incluirei nesse argumento) normalmente atingem mais fortemente aqueles que acreditam em seus preceitos religiosos, como é o caso de muitos filmes e livros com a temática de exorcismo. Mas a obra de Blatty (ele escreveu o roteiro do primeiro filme, pra quem não sabe) é diferente: os demônios estão presentes em todas as culturas e religiões, de uma forma ou de outra, e o mal e a fé não são tratados apenas como questões cristãs, e ele lembra isso; de fato, o livro é um verdadeiro tratado sobre a natureza do mal e da fé, que vai além das barreiras religiosas e se aprofunda no âmago da própria natureza humana, que intercalado com uma estrutura literária colossal, se torna algo realmente transcendental. Creio que apenas poucos autores conseguiram chegar aos pés dele nesse quesito.
"- O que você acha que aconteceu mesmo? - perguntou ele em voz baixa. - Como descrente. Acha que ela estava endemoniada mesmo?
Baixando a vista, ainda brincando com a rosa, Chris pensou um pouco antes de responder.
- Pois é, como você diz... quanto a Deus, eu sou descrente. E continuo sendo. Mas quando se trata do diabo... bem, aí a coisa muda de figura. Nisso eu seria capaz de acreditar. E acredito, realmente. Acredito. E não é só por causa do que aconteceu com a Rags. Falo de modo geral. - Deu de ombros. - Quando se pensa em Deus, chega-se à conclusão de que, se ele existe, então com certeza precisa dormir um milhão de anos a cada noite, porque do contrário teria que ficar irritado. Entende o que quero dizer? Ele nunca abre a boca para nada. Mas o diabo não para de fazer propaganda, Padre. O diabo faz comerciais à beça."
Conversando com alguns amigos, argumentei que a melhor forma para se assistir a um filme de terror é preparar o ambiente de acordo. Apagar as luzes, ficar só e fechar a casa toda, por exemplo, tudo para maximizar a experiência, e isso também vale para livros. Minha edição de "O Exorcista" foi comprada em um sebo (melhor lugar de todos), uma sexta edição publicada pela Editora Nova Fronteira em 1972 ou 73 (não dá pra ver a década exata, o número foi rasgado depois do 7); seus mais de 40 anos lhe deram páginas amareladas e algumas das manchas gordurosas em muitas delas lembram bastante sangue, então só bastou ler o livro durante a madrugada para todo o cenário ser montado. E devo dizer que, a cada batida do vento nas janelas, meu coração dava um salto mortal. Definitivamente a melhor forma de ler esse livro, sugiro fortemente que o façam assim que possível!