Helder 02/06/2020A Voz da VitimaMinha Sombria Vanessa é com certeza o livro mais comentado do momento, e desta vez tenho que dizer que ele merece o hype criado.
Lançado pela Editora Intrínseca, o primeiro romance da autora Kate Elizabeth Russell é um livro extremamente forte.
Mas antes de começar a leitura deste livro, duas mensagens são importantes.
Uma delas está na contracapa:
Essa não é uma história de amor.
O segundo conselho, é meu mesmo, pois precisei me policiar muito durante a leitura para não esquecer:
Tente entender antes de julgar.
Às vezes durante a leitura eu me pegava muito bravo com Vanessa, pensando como ela podia não perceber o que a rodeava, ou falar / fazer as coisas que fazia, mas eu não sou Vanessa, assim como você também não.
Outro ponto importante é que este livro não é só sobre pedofilia. Ele é principalmente sobre abuso.
A narrativa começa em 2017. Vanessa tem 32 anos. Mora sozinha num apartamento minúsculo, trabalha como recepcionista num hotel, fuma maconha e toma remédios.
No momento está acompanhando o crescimento de um post que uma garota postou no facebook, contando que foi abusada por seu professor de literatura: Professor Jacob Strane.
Em 2017 os EUA foram tomados pelo movimento Me Too, onde todo tipo de assedio sexual estava sendo condenado, então logo o post passou a ser amplamente compartilhado, novas vitimas foram aparecendo e despertou o interesse dos meios de comunicação.
E ai voltamos para o ano 2000, onde vamos conhecer a história de Vanessa e entender seu “não envolvimento” com este post.
Ela tinha 14 anos quando ganhou uma bolsa de estudos para um colégio renomado que ficava longe de sua cidade, o que a obrigou a morar no campus, algo que faz apoiada por seus pais, que veem a escola como uma garantia de um bom futuro para a filha única.
Desde pequena, Vanessa sempre fora uma menina muito tímida e sem amigos. No primeiro ano desta nova escola ela faz amizade com sua colega de quarto, mas isso termina quando a menina arruma um namorado. Ai em 2000, ao voltar para estudar o segundo ano, ela decide morar sozinha e numa das primeiras aulas de literatura conhece Jacob Strane, seu professor.
Strane enxerga talento em Vanessa, pois ela gosta muito de escrever, principalmente poemas, mas o que ele realmente enxerga é uma menina solitária e carente. E aos poucos ele vai se aproveitando desta carência para se aproximar da garota.
Primeiro é uma mão boba passando na perna, depois é um livro emprestado, depois é um comentário lisonjeiro.
Vanessa tem 15 anos. Strane 42.
Para ela que sempre foi carente, é incrível perceber que alguém tem olhos para ela. E assim ela vai aceitando aquele assédio. Ou como ela enxerga: Aquela “história de amor”.
Como ela mesma nos conta, ela se sentia poderosa, pois era isso que Strane lhe dizia: Que ela tinha o poder de destruir a vida dele. Que ele estava em suas mãos. Que ela era muito madura para sua idade. Que já não era uma garotinha, mas sim uma mulher.
A gente vai lendo aquelas descrições e nosso estomago vai se embrulhando.
De fora percebemos o assedio moral daquele cara, que já seria abusivo em qualquer tipo de relação, mas que aqui fica ainda mais insuportável.
A autora nos conta esta historia sem censuras ou julgamentos.
O livro é narrado todo em primeira pessoa. Literalmente entramos na cabeça de Vanessa que vai nos contando sua história, e isso é extremamente incômodo.
Neste “depoimento” existe uma ambiguidade, pois ela vai nos contando coisas cada vez mais escabrosas, de algo que começa como um romance idealizado e vai crescendo como uma enorme obsessão que a persegue pela vida. Sabemos que aquilo é errado, mas o tempo inteiro parece que o narrador, Vanessa, está tentando nos convencer que não existe nada de errado ali. Que tudo aquilo é normal.
Vanessa não é uma vitima. Vanessa não aceita ser uma vitima. Vanessa foi amada e quis ser amada. Então sua história é outra. Ela não é como as meninas do Facebook.
E é doloroso perceber esta negação. É doloroso ver a estagnação que isso trouxe para sua vida. É doloroso ver a família não sabendo como ajudar e a escola lavando suas mãos.
A cena em que Vanessa tem que se desculpar por ter mentido em frente a toda a sua sala é de extrema crueldade.
Mas Vanessa sabe.
Mas Vanessa não consegue extravasar.
E tenho certeza que isso vale para muitas mulheres por ai que seguem em relacionamentos abusivos e não conseguem se desvencilhar.
Minha Sombria Vanessa é um livro importante e pesado, que ajuda a perceber que cada pessoa tem a sua dor, e não cabe a nós julgarmos ninguém.
Com as atuais ondas de representatividade os grupos acham que todas as pessoas devem abraçar as causas e levantar bandeiras, mas será que está obrigação não é também uma forma de opressão?
Ler Minha Sombria Vanessa foi uma experiência dura, mas me fez perceber que precisamos ter empatia.
Como dizia Depeche Mode:
Try walking in my shoes Coloque-se no meu lugar
You'll stumble in my footsteps Você tropeçara nas minhas pegadas
Keep the same appointments I kept Manterá os mesmos compromissos que mantive
If you try walking in my shoes Se tentar se colocar no meu lugar
Eu sei que com certeza não faria o mesmo que Vanessa, mas é preciso aceitar que cada pessoa tem a sua dor, e cada pessoa tem o direito de decidir como tratar esta dor.
Se você se sentir preparado, leia este livro.
Senão aguarde sua hora.