Matheus Monteiro 24/06/2021
O aterrador pacto da branquitude
O último ano de escola de Chiamaka e Devon tinha tudo para, apesar da ansiedade em se candidatar as universidades estadunidenses, ser um ano tranquilo. Ambos foram escolhidos como peças fundamentais do conselho de estudantes, a popularidade de Chiamaka nunca esteve tão alta e Devon que geralmente se mantinha sob o radar estava surpreso com seu nome sendo lembrado pelos professores. O que era um início promissor do fim, não demorou a se transformar em um pesadelo quando misteriosas mensagens vindas de um desconhecido Ás começaram a surgir, revelando todos os segredos mais íntimos de Chiamaka e Devon. Com as mensagens cada vez mais íntimas, e a pressão no ambiente escolar aumentando por conta da reação dos outros alunos e da própria segurança dos adolescentes diminuindo, Chiamaka e Devon precisam unir forças e descobrir quem está vazando as mensagens o quanto antes.
Ace of Spades é um suspense psicológico que intensifica e complexifica em termos raciais um tropo que Gossip Girl consolidou que é o de uma pessoa anônima vazando segredos de pessoas em uma instituição de ensino, muitas vezes apenas pelo caos que a fofoca comumente provoca. O que Faridah faz aqui é questionar se os alvos desse tipo de história (que pontua não apenas nosso interesse pela vida alheia, como também a própria segurança da ideia de privacidade) forem específicos por conta do racismo, se ao invés de apenas provocar fofoca (que algumas vezes, já pode causar a desmoralização de uma pessoa e como acontece nessas narrativas, a perda de um status quo) tiver a intenção de destruir por completo uma pessoa, de uma maneira cruel e excludente.
E Faridah intensifica essa questão transformando seu livro em um angustiante suspense psicológico, cada vez mais cruel e desesperador. No decorrer dos capítulos, ela realmente demarca o impacto que ataques virtuais como esses podem causar em uma pessoa. Enquanto Devon e Chiamaka vêm seu dia a dia na escola ruir cada vez mais por conta das mensagens anônimas, também acompanhamos a fragilidade que o emocional de ambos vai sofrendo, principalmente pelas consequências que esses vazamentos podem causar na vida pessoal de ambos (no caso de Devon, o temor que o fato de ser gay se espalhe pela vizinhança homofóbica a qual vive ou a perda do afeto de sua mãe). Em um capítulo, Chiamaka começa a ficar extremamente paranoica com o simples som de notificação de um celular. Faridah inverte então o prazer que comumente sentimos com esse tipo de narrativa, demonstrando o terror e crueldade que uma pessoa sente e sofre com esse tipo de ação.
Um elemento interessante do livro é a construção da amizade de Devon e Chiamaka. Inicialmente, eles não são amigos, sequer se falam e ambos estão inclusive em posições diferentes na hierarquia da escola ( Chiamaka é uma espécie de Regina George, por exemplo), mas por conta da situação precisam unir forças e é muito interessante como aos poucos cada um vai se tornando o suporte essencial do outro. Sobre eles, individualmente, também é interessante notar a construção de seus arcos. Chiamaka, como falado, inicialmente é uma personagem estilo Regina George/Blair Woordorf. A popular, a que todos querem estar perto, a melhor estudante e com um futuro brilhante. Ela tem consciência de seu lugar conquistado para que os outros a rodeiem, e se já vimos esse tipo de personagem inúmeras vezes, Faridah mostra que é uma perspectiva diferente quando se é uma garota de ascendência nigeriana. Chiamaka usa aquilo tudo como uma arma, como uma forma de não ser subjugada, de conseguir o mínimo de respeito em meio a tantas pessoas brancas. Ainda que em algumas passagens fica explicitado que mesmo com todas suas ações, aquele mundo ainda cobra coisas (como a forma que ela lida com o cabelo na escola).
Devon, em contraponto, é um dos personagens mais trágicos que eu li esse ano até agora (ao lado de Tibério de Terra Alagada). Seu arco é carregado de uma angústia constante. De um relacionamento tóxico com um garoto, o medo de perder o amor de sua mãe por conta de sua sexualidade, um outro relacionamento que é conturbado por conta da interferência do Ás, Devon é um personagem a qual é impossível não torcer fervorosamente para que ele tenha um pouco de paz. Particularmente, dos protagonistas foi o que mais me identifiquei por conta das questões envolvendo sexualidade que me trouxeram a angústia e o medo de ser descoberto a qualquer momento. Ainda que Chiamaka seja uma personagem também da comunidade LGBTQIAP+ , a sua relação com a sexualidade não passa pelos mesmos percalços que Devon.
Ace of Spades é angustiante. Principalmente na terceira parte, quando revelações acontece e Faridah demonstra o quão aterrador e violento é o pacto entre os brancos na destruição da vida de pessoas negras. E a autora não aponta esse acordo apenas em sua macro narrativa quando os intuitos das mensagens ficam explícitas e o livro se aproxima do terror com a violência psicológica, moral e institucional contra os protagonistas (sério, é realmente algo ainda mais angustiante que Corra!, filme que o marketing do livro associou em sua campanha de lançamento), mas em detalhes pequenos, como no fato que Chiamaka não consegue pedir ajuda ao seu pai branco (italiano) ao perceber que se ele não lutou para impedir que os familiares falassem coisas racistas contra a própria filha, como poderia ajudá-la a lidar com algo ainda mais sério como o que vem acontecendo na escola? É nesses detalhes que Faridah mostra que ser racista e antirracista não é apenas uma questão de agressão física, mas também de conveniência ou não.
"Soa exagerado, eu sei, mas racismo é um espectro e eles todos participam disso de alguma forma. Não são todos que vão ter capuzes brancos ou nos xingar com coisas ofensivas, eu sei disso. Mas racismo não é sobre isso, não é sobre ser legal ou cruel. Ou bem e mal. É maior que isso." (Capítulo 17, tradução livre)
Com uma terceira parte que exige que o leitor tome fôlego para continuar (eu precisei várias vezes parar a leitura para me acalmar), Faridah cria uma narrativa sombria, mas que ainda contém uma perspectiva de contra-ataque e até esperança, ainda que pelo epílogo, demonstre que sistemas não se acabam em um único capítulo. Ace of Spades é um livro intenso, sombrio e repleto de tensão.