Jasmine 18/06/2021
Contra Mim - Valter Hugo Mãe
A beleza de ?Contra mim?, último livro de Valter Hugo Mãe, começa (ou termina) pela capa-arte da artista brasileira Adriana Varejão. Sou fã do seu trabalho, mas não por isto. Penso que trouxe mais beleza à edição do livro e, além dos azulejos representarem muito do local onde se passa a narrativa, a escolha da artista brasileira parece-me coerente com a paixão e o encantamento pelo ultramarino, que reluz do autor e ilumina a narrativa. Este é o quarto livro de Valter Hugo Mãe que leio e, ainda construindo uma intimidade com sua escrita, sinto-me maravilhada com ?Contra mim?, pela surpresa e deslumbre que tive com sua autobiografia.
Por uma possível e feliz sincronicidade, a temática central do livro coincide com o que mais tenho buscado na literatura: o reencontro com a infância e a voz da infância na memória adulta. Mas o livro é muito mais que isto e, embora no formato de contos ? ?imitando um romance?, nas palavras do autor ?, concentra uma ideia geral que perpassa a obra inteira, e anuncia outros temas como a importância do afeto na família e na educação escolar; o invisível do imaginário infantil na percepção adulta; o processo de aquisição da linguagem e o poder das palavras desde a mais tenra infância; os processos migratórios e o racismo na visão da criança; o contexto histórico, com nuances políticas, econômicas e culturais de Portugal na década de 70 do século XX; dentre outros.
O prefácio lindíssimo da Nélida Piñon poderia ocupar minhas atenções agora, mas deixo esse sabor aos leitores. Peço licença para comunicar não uma impressão geral, mas os encantamentos específicos e uma conexão: temido pelo narrador, o ?apocalipse das crianças? fez-me imaginar o assombro nas mentes infantis durante a pandemia da COVID-19. Tantas lamúrias e perdas, notícias terríveis e ansiedades pela vacina e volta à escola haverão de ter gerado medo e inquietude por esta coisa invisível chamada coronavírus, que mudou a forma de brincar, de estudar e de ser feliz no mundo das crianças ? e até dos adultos, tão sérios e seguros do porvir. Ri muito com a carta de Maria da Luz ao ?love Valter? e muito triste fiquei com o jantar de natal à ?boca pequena?, após a partida do pai.
Entre memória e ficção, o livro conta como nasce um escritor e um artista ? ele mesmo, Valter Hugo; narra a chegada à escola, o encontro com as palavras e a paixão posterior, as alegrias e tristezas, as brincadeiras e fantasias, os medos, os pesadelos reais e as efemérides da infância e esta como lastro das fases seguintes. Como o narrador revela: ?Dizíamos que deixarmos de saber delas (das crianças que caducaram) é como pousar o presente e ensaiar erguer o futuro no amplo vazio. A criança que não regressa é uma falta de saúde do tempo. Uma enfermidade que aguarda de qualquer maneira?.
Ler VHM ? que não é brasileiro, mas ama o Brasil como se o fosse ?, nesses tempos sombrios, é acreditar na potência de sermos mais, é recuperar a força culturalmente esquecida de nossos artistas e de suas obras, da nossa cultura, da beleza que não morreu na pandemia, na potência de existir que não se esvaiu com o autoritarismo que nos governa, no passado belo e no alimento da esperança de dias melhores. Foi pensando nesta beleza e no enclausuramento do último ano, que este livro foi escrito. A escrita de VHM e sua sensibilidade marcada pela cultura brasileira são envolventes também para nós, brasileiros. Não à toa, seus livros lotam mesas e estantes de livrarias por todo o país, perfis de bookstagram e programações de festas literárias nacionais e locais.
?Que fortuna a de poder redobrar os sentidos, multiplicar tudo pelo infinito, através da arte, virtude de se ser ou tornar humano? é como o livro se despede. Ele queria ver ?se as palavras são capazes de acender como os pirilampos? e, sem dúvida, devo dizer que, pelo menos dentro de mim, elas acenderam e ainda estão a brilhar. Possivelmente, não apagarão.