Natasmi Cortez 05/04/2023Ela queria ter sido "A Mais Amada"A experiência de ler uma autobiografia ficcional é única e agridoce. O êxtase que envolve o leitor é uma espécie de prazer culpado. Ver de perto as entranhas de uma família de renome, ser exposto aos seus segredos mais sujos, é como se aproximar de um ser antes inalcançável. É como estar em pé de igualdade com essas pessoas que assombram o nosso imaginário. O imaginário de quem possui uma vida ordinária. Ao mesmo tempo em que nos entregamos à essa narrativa, nos perguntamos se é certo chafurdar na dor alheia.
Talvez caiba nessa situação a desculpa do gênero literário. Aquela partezinha denominada ficção que permite que a autora/narradora vá além. Partes da sua história que ficaram sem resposta e que ela tenta desesperadamente reconstruir e recriar a seu bel prazer, para seu propósito. Quanta coragem Teresa reuniu para jogar a família ao escrutínio público?
Eu gosto é dos detalhes, das sutilezas, de um autor que consegue ir e voltar no texto sem se repetir, ao mesmo tempo que retoma assuntos já discutidos e assim cria pontos de conexão na história. Teresa faz isso muito bem. É como construir um quebra-cabeça. As peças se encaixam, cada personagem assumindo seu papel na trama e o leitor fazendo o próprio julgamento. Julgamento esse que causa incômodo e frisson. O leitor analisa a obra com um olhar superior, pronto para pontuar o certo e o errado, tal qual um deus onisciente. Mas nós não estávamos lá, não vimos com nossos olhos, nem escutamos com nossos ouvidos. O que temos são as palavras de Teresa, e ninguém que possa refutá-las. Um texto brilhante, envolvente, de ritmo frenético que sempre lançará sobre nós uma dúvida: o que é real e o que, não é?
Os personagens são perfeitos em suas imperfeições e isso camufla a veracidade do texto. Um pai perverso, mesquinho e manipulador, que facilmente se assemelha a um vilão, mas que ao mesmo tempo é tão brutalmente parecido com outros pais e homens que já conheci que se torna incontestavelmente humano.
Ou a mãe, que passa por um apagamento completo, a ponto de ser esquecida, mãe essa que foi tão quebrada pelos anseios perdidos, pela maternidade compulsória, pelo marido manipulador que preferia estar dormindo do que existindo em uma espécie de sobrevida. Quantas mulheres são a representação da mãe de Teresa? Seria ela, pura e simplesmente um símbolo dos sonhos partidos, ou mais uma vítima daquele machismo que passa em cima de todas nós como um rolo compressor?
O casamento perfeito para quem olha de fora, uma relação desigual para quem presencia o dia a dia. Um livro que narra a ascensão de um homem e a decadência de uma mulher e entre eles duas crianças, fantasmas, frutos de uma violência silenciosa e quase imperceptível. Teresa e o irmão usam as próprias ferramentas para vencer esse meio asfixiante. Ele, como a mãe, emudece. Ela, como o pai, manipula. E como confiar nas palavras de um narrador tão manipulador?
Teresa que culpa o pai pelos segredos e pelas transgressões diárias aos direitos humanos. Teresa que culpa a mãe pela inércia, e depois a culpa pela reação tardia. Teresa que ainda é aquela criança que só quer ser vista e amada. Criança que foi uma obrigação para a mãe e um estorvo para o pai. A adulta que ela se tornou é um reflexo daquela toxicidade que escorria pelas paredes da casa. Ela reconstrói a própria história na tentativa de talvez exorcizar as lembranças que a prendem ao passado e que a atraem para o mesmo lugar: a mansão. Símbolo máximo da riqueza e poder de um sobrenome: Ciabatti. É nesse lar descontruído que Teresa reside, nele estão as promessas de uma vida que nunca se concretizou. Teresa conta sua história e cabe ao leitor decidir se irá acreditar ou não.