arilopes 21/05/2024
As Musas
Tudo começa com Deméter e Perséfone ? e termina no Mundo Inferior. Como em uma tragédia grega, Mariana perde seu grande amor, Sebastian, para a morte. Perséfone, soberana do Submundo, o reivindica para si e Mariana mergulha em sua melancolia. Contudo, diferente do mito em questão, Mariana não torna as terras inférteis para os lavadores a ponto de Zeus intervir. Mariana vive em um mundo através de um véu, através do luto. E, tardiamente, percebemos como o luto é uma experiência individual, porém universal.
Ocorre-me que o infortúnio do luto é lembrar, a cada vez que vivemos uma experiência que nos remete a quem perdemos. O luto é um sentimento diário e Michaelides o expressa, engenhosamente, por meio da Mariana e as memórias que tem de Sebastian nos lugares que costumavam frequentar ? e, acredite, é parte do processo de cura lembrar, até que seja possível lembrar sem sentir dor. Todavia, o luto pode afetar a sanidade mental ou a lucidez. E, em muitos momentos, não me passou despercebido a possibilidade de Mariana ter perdido as rédeas da situação. Deméter a perdeu ? e era uma deusa.
Mariana é uma terapeuta de grupo e, ironicamente, idealizo que profissionais dessa área são ? é difícil escolher apenas uma palavra para os definir ? superiores. É como se existissem à parte. Deuses no monte Olimpo. Capazes de lidarem com qualquer situação adversa, compreender o outro em toda sua alteridade e dotados da habilidade de assimilar os comportamentos de outro ser humano com intuito de tratá-lo, afinal, se são qualificados para entender e ajudar mentes turbulentas é porque aprenderam a lidar com as próprias. Estive enganado todo esse tempo ? não existe essa quimera. Mariana tem tantas questões que precisa aprender a lidar, traumas familiares e conflitos internos. É interessante ler sob a perspectiva de uma terapeuta e visualizar sua linha de raciocínio, mas Mariana não é bem resolvida intimamente, mede cada palavra ou passo como acreditava. Em outras palavras, ela é comum e, por definição, os outros também. Desmistificar o mito que concebi é o caminho, equilibra a balança.
Quanto à narrativa propriamente dita, confesso que vejo que Michaelides tenta, a todo custo, desnortear o leitor. A falta de linearidade em A Paciente Silenciosa foi um incômodo, a confusão ambígua criada com quem era o assassino em As Musas foi uma cilada. Michaelides caminha para o óbvio como método de apresentar um plot twist no estilo Deus ex machina. Não houve nenhum personagem que eu não tenha desconfiado de suas intenções, porém, devido a uma pequena observação de Mariana, consegui desvendar o assassino, mas a angústia de não saber os porquês de suas motivações e atos persistiu. A morte de Tara e as subsequentes foram um pretexto para a idiocracia que Mariana partilha com Tennyson ? bem debaixo do nariz!
Normalmente, lido bem com o desfecho das narrativas. Lamentavelmente, a conclusão de As Musas não participa desse grupo, não está convidada a sentar em uma das cadeiras dispostas em círculo. Neste momento, devoto que uma das filhas de Perséfone e Hades, uma Fúria, puna Michaelides por ter finalizado essa história com uma simples palavra. E meu descontentamento é tamanho que pretendo ler, em breve, A Fúria por respostas ? até lá, que seja como o inverno de Deméter para Michaelides, improlífero.
Michaelides tem como característica marcante sua escrita ? e as analogias de suas obras à mitologia grega. A dramaticidade o envolve, os capítulos curtos são o mecanismo de imersão e as conexões e presença de outros personagens estabelece a construção de um universo ficcional próprio do autor em expansão. As Musas é, em uma simples promessa, uma tragédia. Funesta, ambígua, ardilosa, vingativa, teatral. Deméter pode ter sofrido por motivos equivocados ao não perceber que o sequestro de Perséfone por Hades foi, na verdade, uma bênção disfarçada. O Mundo Inferior soa como o interior de cada homem.
"Nascemos sendo observados ? as expressões faciais dos nossos pais, o que vemos refletido no espelho dos olhos deles, determinam a maneira como nos vemos."
"No fundo, todos esperamos que as tragédias só aconteçam com os outros."
"Ler a respeito da vida não significava se preparar para viver"
"Melhor ter amado, e depois perdido, do que jamais saber o que é amor"
"Depois que morremos, pensou Mariana, tudo o que resta de nós é mistério; e nossos pertences, obviamente, vão ser revirados por terceiros."
"Normalmente, não se tem consciência daquilo que é continuação da própria infância."
"Não se pode amar alguém se a pessoa lhe causa medo, Mariana."