Kesio.Rodrigues 15/04/2023
O Cemitério Selvagem do Século XX
Muitos falam que 2666 é um livro sem centro, outros consideram que Santa Teresa, cidade onde os crimes da narrativa ocorrem, é o verdadeiro centro do livro. Bolaño traça um panorama fragmentado, mas não menos total, de todo o século XX com enfoque na brutalidade. Um século totalitário que produzia a morte de forma industrial através de discursos extremistas. Um século que produziu a maior parte das artes que discutimos hoje, vindas muitas vezes de mentes que continham ideias que desprezamos. Um século que, sendo puramente contraditório em tudo, nos entregou um século XXI não menos doente.
O livro se divide nas 5 partes já clássicas: A Parte dos Críticos, A Parte de Amalfitano, A Parte de Fate, A Parte dos Crimes, A Parte de Archimboldi.
1 - A Parte dos Críticos:
Nessa primeira parte acompanhamos os movimentos de 4 críticos literários que são apaixonados pela obra do autor alemão Benno Von Archimboldi. Eles seguem os escassos rastros desse escritor recluso e acabam parando na cidade de Santa Teresa. Nessa parte o pessimismo irônico de Bolaño já mostra seus primeiros sinais quando dois dos intelectuais, que participam de tantos encontros literários e possuem um grau acadêmico tão elevado, agridem de forma brutal um taxista emigrante.
2 - A Parte de Amalfitano:
Amalfinato é um professor exilado que vive com sua filha Rosa na cidadezinha do México chamada Santa Teresa que faz fronteira com os EUA. Essa é uma parte mais intimista, sendo contada em longos parágrafos que giram principalmente, mas não apenas, em torno do medo que Amalfinato sente de que algo de ruim aconteça com sua filha. Nessa parte os crimes ficam mais explícitos com Amalfitano entrando em Paranóia por conta do medo.
3 - A Parte de Fate:
Fate é um jornalista americano que vai à cidade de Santa Teresa cobrir uma luta de boxe entre um lutador dos EUA e um lutador mexicano. Essa parte é bastante psicodélica e mostra que Santa Teresa é uma espécie de Purgatório que atrai as almas atormentadas e seus moradores se assemelham a fantasmas. Pouco a pouco o jornalista se vê envolvido com os crimes que vêm ocorrendo.
4 - A Parte dos Crimes:
Apesar das 3 partes anteriores, nada te prepara para essa parte. É um desfile assombroso de caos e ódio, onde são descritos, página após página, 400 mulheres mortas. É a melhor parte do livro. Como se Bolaño expusesse o caráter de uma sociedade, pós-nazismo, estupidamente louca. Santa Teresa, nessa parte, ganha um status sodomita, onde os exageros Sadianos são estendidos à toda uma sociedade constantemente impedida de se livrar dos crimes. A precarização do trabalho faz muitas mulheres tentarem conseguir o seu pão de cada dia na prostituição e da prostituição às grandes orgias remuneradas que impulsionam os assassinatos. Afinal, de quem é a culpa? Dos políticos que não fazem nada a respeito e deixam as ruas em tal estado precário que as vielas se assemelham a buracos negros onde o único sinal emitido são a vozes dos moradores, ou da polícia profundamente corrompida que abusa de vítimas e faz piada com o caos? De quem é a culpa? De um único criminoso, ou de toda uma sociedade viciada em consumir tragédia como entretenimento? Sociedade essa que é constantemente abastecida pelos jornais que estão em busca sempre da próxima brutalidade. O catálogo de imagens de dor vai desde mulheres sendo descartadas em lixões públicos até um conto snuff.
5 - A Parte de Archimboldi:
Aqui acompanhamos a vida do escritor misterioso que os críticos buscam na parte 1: Benno Von Archimboldi. Mais precisamente: acompanhamos uma trajetória crua da vida durante o século XX. Essa parte vai da Alemanha à URSS, te mostrando ascenção e quedas não só de impérios, mas também de seres humanos. Essa parte é um show de sensibilidade e, além disso, conecta o livro inteiro. Que prazer deve ter sentido Bolaño ao dar vida a um criador como Archimboldi! Nessa parte Bolaño brinca com todos os gêneros literários possíveis: Gótico, ficção-cientifica, romance de formação, romance de guerra, conto, novela, ensaio, crônica etc.
Archimboldi é, em resumo, o ápice da escrita de Roberto Bolaño.
Ao terminar esse livro, a única coisa que consigo pensar é em agradecer o Bolaño por ter mudado a forma como eu enxergava a literatura. Sem recorrer a um vocabulário complicado, Bolaño abraça a vida.