Contos e Histórias de Proveito e Exemplo

Contos e Histórias de Proveito e Exemplo Gonçalo Fernandes Trancoso...




Resenhas - Contos e Histórias de Proveito e Exemplo


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Gabalis 09/12/2021

Contos de moral e fantasia
"As irmãs da rainha foram enterradas sem pompa por sua desesperação, e escrito sobre suas sepulturas sua morte e a causa dela, porque a todos fosse manifesto que os maus pagam perdendo vida, honra e alma; e os bons, ainda que algum tempo sejam perseguidos, é para mais merecimento seu. E per derradeiro o Senhor os livra, se é Seu serviço, e lhes dá com que passem os trabalhos e perseguições, de que os tira com honra. E passada a vida em paz, os leva a Sua glória, donde sejamos nós todos juntos. Amém."

Este trecho do oitavo conto da segunda parte abarca o tom das mais de quarenta histórias presentes no Contos e Histórias de Proveito e Exemplo do Gonçalo Fernandes Trancoso. Hoje em dia infelizmente esquecido, este foi um dos livros mais lidos na história da literatura portuguesa, sendo reimpresso sucessivas vezes por duzentos anos desde sua primeira publicação em 1575.

Para um leitor moderno é muito fácil desistir de ler Trancoso logo de cara. É um escritor religioso e suas histórias têm sempre um cunho moralizante. Além disso, muitas de suas histórias seguem um pouco das regras mágicas dos contos de fadas. Porém se engana e perde muito aquele que o despreza por esses motivos. Seus contos não perdem para um Boccaccio ou um Basile. Os personagens seguem com todo tipo de maquinações, os ímpios são sempre criativos em suas impiedades e os justos sofrem de tudo com grande fortitude e são por isso recompensados por um destino sempre benevolente e planejado. Os contos são cativantes e se por mais nada, o léxico utilizado pelo autor já vale a leitura.

Se num primeiro momento Trancoso parece ingênuo, quanto mais você o lê, menos ingênuo ele parece, ou antes, mais compartilhamos com ele sua ingenuidade. Sua certeza arraigada sobre o perpétuo triunfo dos justos serve como um mirante de onde podemos olhar à distância nossas próprias certezas e força a consideração que dentro em pouco, nós também iremos parecer ingênuos como ele naquilo que hoje nos apegamos. Dessa maneira Trancoso foi, conto a conto, ganhando minha amizade e admiração. Que ele tenha transformado sua dor e luto em literatura é já coisa digna de muita nota. O autor mesmo comenta que começou a trabalhar nessas narrativas depois de perder praticamente toda sua família na peste que assolou Lisboa no tempo em que vivia.

É verdade que seus contos começam tímidos, mas como melhora a cada história!
No começo são coisas bem curtas, baseadas em ditados populares, mas ele não tarda em apresentar tramóias de muito charme, vilões e bandidos de variada argúcia, objetos e lugares de curiosa fantasia, anéis amaldiçoados, ossadas mágicas e gente de todo tipo que interessa saber de onde vem e para onde vão. E tudo isso ele consegue publicando sob as égides do santo ofício. Quais e por quais motivos algumas histórias foram censuradas merece um estudo à parte.

Aliás tenho pra mim que censuraram duas das melhores histórias de todo o livro. O décimo conto da primeira parte e o décimo da segunda parte. Ambos possuem interessantíssimos objetos mágicos e seriam muito apreciados por um público contemporâneo, leitor de fantasia, mas na época era considerado impróprio para publicação. Mais interessante ainda é que ambos fazem parte de um mesmo universo e usa o mesmo personagem principal; um velho sábio que se vende para um rei mouro a fim de conseguir dinheiro para o dote da filha. Felizmente ambos foram publicados em diferentes versões. Infelizmente uma terceira parte que Trancoso menciona existir, foi censurada e nunca publicado.

É realmente uma pena que Gonçalo Fernandes Trancoso seja um caso tão raro na literatura de língua portuguesa. Não houve alguém que continuasse a novelística e o conto em língua portuguesa, e Trancoso foi praticamente o único por quase dois séculos. Uma pena também que essa tenha sido sua única coleção de contos. Quem sabe o que teria saído de sua pena se tivesse publicado ainda um quarto ou quinto compilado de histórias de proveito e exemplo.

Por fim algo tem que ser dito do trabalho do Fernando Ozorio Rodrigues pois esta edição é excelente em todos aspectos. Não só ele resgata todas as histórias e publica-as em um único volume, mas também estabelece o texto, coligindo-o das várias edições e o anota. Escreve também um compilado de quase tudo o que foi pesquisado e publicado sobre a vida do autor, com copiosa bibliografia. Vem também uma pesquisa acerca de tudo o que se sabe até agora sobre as fontes das histórias, além de um glossário muito útil, já que o português usado aqui tem quase 500 anos.
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