De verdade

De verdade Sándor Márai




Resenhas - De Verdade


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Fabrício Franco 14/05/2024

O que é de verdade?
Do que li: uma crítica à burguesia europeia da época entreguerras. O romance é constituído pela fala de quatro narradores diferentes, ao longo de quarenta anos, cada um contando uma mesma história a partir de seus diferentes pontos de vista. Uma esposa que tentou a todo custo conquistar o amor de seu marido; um homem que nunca se libertou de uma antiga obsessão; uma mulher amargurada, que jamais aceitou o que a vida lhe deu; e um amante obrigado a fugir de seu país no pós-guerra. É neste jogo de contrastes que o autor demonstra como não existe uma única verdade e como esta pode ser subjetiva, em função da cultura, classe social e, finalmente, dos interesses envolvidos.

A prosa elegante de Márai, em sua despretensão e crueza, explora os labirintos e surpresas do amor nas relações humanas, seus desencantos e desesperanças. A atmosfera, os personagens, a trama em si, são de um pessimismo avassalador. Repleto de nostalgia e arrependimento, o livro evoca e examina tanto a natureza da saudade quanto o declínio de uma sociedade.
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Edna 07/02/2024

Cru
Sándor Maraí é brilhante, neste livro ele criou quatro personagens fortíssimos e cada um deles narra a seu modo os fatos da história, o que deixou a segunda e terceira parte um tanto enfadonha, mas ñ tirou a importância da história, que fechou incrivelmente com o último Narrador o Baterista Eder.

Ilonka, Peter, Judit narram as primeiras partes sobre os conflitos conjugais com todos os seus percalços na íntegra ?De verdade? como o título, durante as duas guerras e o cerco da Rússia e Alemanha à Budapeste, os esconderijos, os escombros, as raízes pobre de Judith são tocantes desde a infância morando em valas com a família até aos dezesseis anos qdo inicia a vida de proletária e servindo à família burguesa de Peter.

Todos os personagens te passam uma sabedoria única, mas ponto alto do livro sem dúvida foi o artista sendo convertido em dedo duro para os russos e ñ aceita, preferindo aos riscos da fuga diante dos perigos iminentes oferecidos pela União Soviética.
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arthur966 09/10/2023

O medo, porque por orgulho as pessoas não têm coragem de aceitar o dom do amor. é necessária muita coragem para que alguém aceite ser amado sem resistência. muita coragem, quase heróica. a maioria das pessoas não sabe dar nem receber amor, por covardia e vaidade receiam o fracasso. tem vergonha de se entregar, e mais vergonha ainda de revelar ao outro seu segredo... o segredo humano, triste, de que se precisa de ternura, que não se vive sem ela. [...] eu ainda não sabia que do que se envergonhar no mundo. apenas a covardia é vergonhosa, a vergonha em razão da qual não somos capazes de dar ou de acolher sentimentos. não existe vida pior.
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Bruno.Dellatorre 08/02/2021

Um livro quase perfeito... quase!
Reforço o comentário de outro leitor que diz que a segunda parte, ?Judit e a fala final? é dispensável e inferior à primeira parte.

Tive dificuldades em perdoar essa transformação súbita da história, que inegavelmente decaiu da metade até o final.

Apesar disso, nunca conseguirei me esquecer da Ilonka, do Peter, da Judit, do que aprendi com cada um deles, do que a relação deles significava. A primeira parte foi marcante o suficiente para mim a ponto de eu poder perdoar qualquer coisa que tenha vindo depois.

A escrita também é um ponto a favor do livro. Ele pode se perder no enredo, mas a escrita é maravilhosa do começo ao fim. Que escritor! Um dos meus autores favoritos, sem dúvida.
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Enry 09/11/2018

"Judit e a fala final" é dispensável
A primeira parte do livro é magnífica, sensacional. Os fatos observados por Ilonka e Pétér são tocantes, profundos, com um apelo emocional gigantesco.
Já a segunda parte, denominada "Judit e a Fala Final", apesar de ser bem escrita e interessante, é completamente inferior à primeira. Desnecessária. Não sei o que levou Sándor a escrevê-la. É como a sequência de um filme bom, feito pra bilheteria, que é bom mas não supera o primeiro.
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pamnogueira 21/11/2017

A obra é uma grande crítica à burguesia europeia da época entreguerras. São quatro capítulos, cada um narrado por um personagem. A trama não atinge um ápice, não há um grande acontecimento, portanto esse é o aspecto mais interessante do livro: ler as diversas vertentes da mesma história. Começa tendo como pano de fundo a história do casamento falido de Péter e Ilonka, a primeira narradora, que conta para uma amiga a angústia que viveu no casamento por sentir que a alma do marido pertencia à outra mulher. Depois o narrador é Péter, o marido, que conta a sua versão sobre o relacionamento e o que de fato significou essa outra mulher na vida dele. A terceira e a quarta parte foram escritas 40 anos depois. A terceira narradora é Judit, uma das criadas na casa da família de Péter que, de um quarto de hotel em Roma, expõe a sua versão dos acontecimentos e descreve uma Budapeste completamente devastada pelas atrocidades cometidas pelos comunistas e pelos nazistas durante Segunda Guerra Mundial. O quarto narrador é um amigo confidente de Judit, que fugiu para Nova York por não concordar em ajudar os comunistas. E ele reconta resumidamente a história que ouviu dela, com duras críticas ao consumismo nos Estados Unidos.
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Caroline Gurgel 08/08/2017

Denso e angustiante, mas incrível
Mais um livro de Sándor Márai e aqui estou, novamente, tentando escolher as palavras adequadas para expressar o que ele me faz sentir.

De verdade fala sobre casamento e separação, sobre amores e dissabores, sob a perspectiva de quatro personagens, cujas histórias se completam – ou se despedaçam. Uma esposa que tentou a todo custo conquistar o amor de seu marido; um homem que nunca se libertou de uma antiga obsessão; uma mulher amargurada, que jamais aceitou o que a vida lhe deu; e um amante obrigado a fugir de seu país no pós-guerra.

Como sempre, Márai nos traz um enredo muito simples. São as palavras que brilham, que sufocam e que encantam. O autor vai lá no fundo da alma de seus personagens, para tocar e ferir o leitor sem piedade.

Márai consegue sugar todas as minhas forças e tirar todo o meu ar. É poético, denso, e fala com maestria sobre os sentimentos. Todos os sentimentos! Dá um peso quase palpável à mágoa que chega a doer.

A sensação que dá é que ele não lhe leva para dentro das páginas, mas para debaixo delas. E, como se não bastasse tudo isso, nos ambienta muito bem na Budapeste que ainda sofria com os horrores da guerra e nos mostra o declínio daqueles que tinham tudo e viram suas vidas se despedaçarem.

Sándor Márai tem o poder de me prender completamente na magia de suas tristes e sábias palavras. Vale, e como vale, a leitura.

instagram: @historiasdepapel_

site: www.historiasdepapel.com.br
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DIRCE 14/01/2017

Uma quadrilha by Sándor Márai.
Por ocasião da minha leitura do livro “As brasas”, recordo-me que fechei o livro com uma indagação: o que Sándai me reservará em um próximo livro que eu me dispuser a ler? Bem , o livro que seguiu ao “ As brasas” ( depois de um lapso de tempo considerável) foi o “ De Verdade”, e o que me levou a ele foi a avaliação do nosso colega leitor – o Zé. De imediato, o que me chamou a atenção foi o clima de mistério presente no romance e que me levou a uma leitura desenfreada, entretanto, à medida que eu caminhava para o interior da obra , o clima de mistério cedeu lugar ao espanto. Sim , espanto. Meus olhos se depararam com uma quadrilha by Sándoi Márai:
Marika(Ilonka) amava Péter que amava Judit que amou Ede que amou Judit ( ou não)
Marika casou-se com Péter , porém essa a relação acabou em divórcio , Judit , por sua vez, foi de uma perseverança inimaginável e , consequentemente, alcançou o seu objetivo, entretanto, não se livrou dos horrores da Guerra.
Péter optou pelo exílio, Ede foi para os Estados Unidos onde presenciou e experimentou o consumo exacerbado e ,tempo depois, encontra-se com Péter, e esse encontro lhe permite perceber que só o Amor coloca os seres humanos em pé de igualdade. Mas que ironia,o Amor ...Drummond fala justamente dos descompassos desse sentimento:
João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili,
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.
Drummond, perdoe essa pobre coitada,ela não sabe o que faz: “assassinou” sua quadrilha, mas foi por uma boa causa: mostrar a possíveis futuros leitores do “De verdade” que a ficção imita a vida e que a vida é como uma quadrilha descompassada , e cada “ dançarino” carrega sua tragédia pessoal como Péter, Marika, Judit e o Ede carregaram, e mais: foi-lhes dado perceber que não existem relacionamentos perfeitos, tampouco, sistemas políticos perfeitos.
Essa obra não levou 5 estrelas e foi para os meus favoritos porque , embora eu seja uma total ignorante no tocante as traduções, fiquei com a sensação que a tradução deixou a desejar – mesmo com meu parco conhecimento da língua portuguesa, deparei-me com redundância, a meu ver inaceitável , do tipo: Há tantos anos atrás. Acredito que quem teve ( ou tiver) o privilegio de ler essa obra no seu idioma original (húngaro) , desfrutou ( ou desfrutará) de uma leitura impar.
14/01/2017minha estante
Pelo jeito gostei mais do que você, Dirce.


Wagner 14/01/2017minha estante
...dez


DIRCE 15/01/2017minha estante
Sim, Zé. Gostei mais do AS Brasas. Você já o leu?
Achei curioso como a ESPERA é gritante nas duas obras. Em As brasas o general espera por 41 anos e 43 dias para um acerto de contas. No De verdade, Judith também espera anos e anos para alcançar seu objetivo - sua vingança social. Será que Márai também ficou à espera de algo que não se concretizou e esse foi o motivo de ele por fim à sua vida? Foi uma pergunta que me fiz. Mas valeu muito a dica.




Fabiana 16/06/2012

O livro que me assombrou por dias, meses...
Eu teria todos os motivos do mundo para abandonar este livro: uma profundeza sem fim num momento de vida onde buscava uma leitura mais descontraída, divertida, um relaxamento de final de dia. Li "De Verdade" em conjunto com vários outros livros que em sua maioria versavam sobre relatos de viagem + gastronomia.

Ele nem ficava na minha cabeceira, mas na estante. Como um fantasma ele me assombrou até terminá-lo. Uma amiga (por sinal a que me emprestou o livro) me falou que ler Sándor tem até um lance meio masoquista: "sofremos muito ao lê-lo, mas não conseguimos parar".

Não é uma história triste. A tristeza está na simplicidade e crueza com que esse brilhante autor narra a condição humana, seus desencantos, desesperanças. Contudo, a atmosfera, os personagens, a trama em si, são de uma natureza pessimista avassaladora.

A crítica (mesmo que "aristocrática" em alguns momentos) à luta de classes (burgueses x proletários), à invasão russa a Buda e Peste, ao consumismo norte-americano é a linha mestre pela qual os personagens narram a mesma história sob seus diferentes pontos-de-vista. Na verdade é a história de suas vidas.

Não sei qual personagem gostei mais: Ilonka, Péter ou Judit. A medida que você avança na leitura, você vai desvendando a alma de cada um deles, seja quando dado personagem é narrador, seja quando ele é narrado por outro personagem.

Sem sombra de dúvida um livro denso, profundo e maravilhosamente bem escrito. Um livro como poucos. Mas para saboreá-lo há que ter sofrimento, esforço...como a própria vida, não?
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Johnny 08/05/2012

Profundo e denso
O escritor Sándor Márai nasceu em 1900, numa cidade (Kassa, atual Kosice) da chamada Alta Hungria. Esta cidade, que naquela época pertencia ao Império Austro-Húngaro, situa-se no atual território da Eslováquia. Sándor Márai viveu intensamente a Primeira Grande Guerra, circunstância que se faz presente no contexto de seus muitos romances. Foi censurado pelos comunistas, exilou-se em 1948 e suicidou-se na Califórnia, no ano em que caía o Muro de Berlim, 1989.

Do mesmo autor, li também "As Brasas", e parte de outro romance que me desinteressou no meio do caminho, com o título "Os Rebeldes". "De verdade" é um livro grossinho, meio pesado para ler num trem do metrô, um dos meus espaços de leitura. No trajeto diário de ida-e-volta para o meu trabalho, viajo normalmente de pé, a pasta de executivo numa das mãos, o livro aberto na outra, às vezes amparado por algum apoio disponível, raramente sentado. Dureza. Resolvi encarar as quase quinhentas páginas desse que é o livro da vez. Não é assim tão grande, sejamos francos, mas o peso e o tamanho importam, particularmente quando se lê espremido e em movimento.

Sándor Márai segue uma linha triste, cujo eixo é o sentimento humano. Tudo o que vai além disso em seus livros pode-se considerar adereço. As poucas descrições do ambiente, as palavras sobre o tempo e o vento em Budapeste, apenas servem de complemento a um minucioso revolver da alma humana. Inundando cada página, a dor irreparável, os rancores petrificados e os mistérios do amor são questões tratadas com profundidade. As personagens parecem mostrar suas impressões sobre a vida de maneira clara e espontânea, mas numa atmosfera de amargura que redescobre velhas cicatrizes. Pairam nessa atmosfera uma sexualidade reprimida, um traço conservador, com suavíssimas alusões de cunho homossexual. Sou levado a crer que, em geral, as mulheres devem se identificar mais com o seu estilo do que os homens, e considero que afirmar isso pode levantar polêmicas interessantes.

Na primeira de suas quatro partes,"De verdade" tem a forma de um monólogo, narrado e remoído em primeira pessoa por uma mulher. Separada há alguns anos, Ilonka relata a uma amiga, à mesa de uma antiga confeitaria, a história de seu casamento, do filho que viveu apenas dois anos, da convivência com Péter, o marido rico e impenetrável, do desejo mal resolvido de possuir a alma de alguém, do fim do casamento.

Há passagens que revelam uma moral severa, que já percebi serem habituais na obra do autor, colaborando para acentuar os nuances de traço conservador que mencionei anteriormente. Resvalam numa elegantíssima auto-ajuda, pelo tom apologético, contudo sem termos de comparação com algumas porcarias que encontramos por aí. Esta é a grande diferença. Sándor Márai é um grande escritor. Possui amplo controle do fluxo narrativo. Pensa de maneira consistente. Cria sempre poucos personagens, porém bastante verdadeiros. E sabe desenvolver o conflito interior, direciona a emoção do leitor, enquanto explora as perguntas substanciais da vida. O contraponto à narradora aparece vez por outra na história, como, por exemplo, quando fala da rigidez moral que parece sustentar o comportamento distante do marido: "Não acredito em lágrimas. A dor é sem lágrimas e muda.", ele diz.

Na segunda parte do romance, quem fala é o marido. À mesa de um café em Budapeste, Péter despeja diante de um amigo a sua versão da história. Não temos aqui uma contraposição à fala de sua primeira mulher. Temos, antes disso, um aprofundamento. Péter nos faz compreender sua impenetrabilidade, sua solidão. Os hábitos extremamente formais de sua infância, o rigor minucioso da família, os ritos de uma burguesia que se mantinha no poder por trás de uma casca de aparências, a imagem austera do pai, todos estes componentes de sua formação psíquica vão persuadir o leitor sobre sua capacidade, inicialmente absurda, de manter durante anos a fio uma paixão platônica por uma criada, Judit, que vivia na casa de sua mãe, uma jovem de outra classe social, uma plebéia, com quem trocara apenas poucas e desesperadas palavras. É esta paixão oculta que corrói seu primeiro casamento. Quando Judit retorna de Londres, após um exílio que se impusera, Péter deixa a casa, afasta-se do seu círculo social e vai viver com ela.

Porém, a luta de classes instala-se no interior deste seu novo relacionamento, com tintas de vingança, servilidade e consumo fútil. Como ele mesmo diz, "na vida ninguém pode apostar, impune, corrida contra os desejos". Péter se sente roubado na alma (fato que ele aceita), nas finanças (o passado pobre de Judit justifica sua atitude preventiva) e na honra (aqui, o olhar de superioridade e desprezo da empregadinha de outrora é a gota d'água para um novo rompimento). Seu destino é a solidão.

"De verdade" terminaria por aqui, como um dístico de dois narradores, mas, quarenta anos depois, o escritor acrescentou-lhe dois novos blocos (denominados "Judit e a fala final"). O terceiro narrador passa a ser, então, a segunda esposa de Péter. Na Itália de 30 anos depois, já separada do rico burguês, ela conversa na cama com um baterista que a ajuda a vender as jóias subtraídas durante seu casamento. Judit descreve a vida luxuosa da nobre família burguesa para a qual trabalhou como empregada doméstica antes de se casar com um dos patrões.

O conforto propiciado pela riqueza seduzem e, ao mesmo tempo, agridem a narradora. Banheiros separados, pintados em cores diferentes para cada habitante da casa, com rolos de papel higiênico importados, a abundância de roupas e sapatos, os detalhes da sóbria intimidade que partilhou, todas as as passagens de seu relato são denúncias com um travo de humilde respeito e ácido rancor. O que roubar dos ricos para lhes retirar o eterno sorriso amável da expressão? Judit sabe que, mesmo se lhes expropriassem toda riqueza, ainda assim levariam consigo algo inalienável, um espírito de corpo, um senso de classe e superioridade. Esta terceira parte do livro parece a mais longa de todas, exigindo alguma disciplina do leitor, para que não desista ante uma sensação de que está sendo enrolado com um excesso de recorrências.

O baterista que foi ouvinte de Judit no terceiro bloco torna-se o narrador da quarta e última parte do romance. Segundo suas palavras, ele veio para os Estados Unidos porque não aceitou colaborar com os comunistas alçados ao poder na Hungria depois da Segunda Guerra. Em Nova York, ele trabalha como garçom em um bar. Tem seu carro, seus pequenos luxos, que diz serem maiores do que os desfrutados pelos nobres de outrora em sua terra natal. Vive de crédito, sua dívida de oito mil dólares não é suficiente para perturbá-lo, pois é assim que vivem as pessoas na auto-proclamada América. O patrão faz o proletário engolir tudo a crédito. Antes, esse proletário servia ao patrão, que usufruía diretamente de seus serviços. Agora, se o proletário não usufruir também das benesses, se não comprar como um louco, se ignorar o crédito que lhe é oferecido, o patrão deixa de existir. No trecho abaixo, lembrei-me de uma frase estupenda de Eduardo Galeano, onde ele dizia que "no mundo de hoje, é proibido ficar satisfeito":

"... trocavam idéias sobre o fato de que nesta grande abundância, na América, poucas eram as pessoas satisfeitas. Nisso eu prestei atenção, porque eu também sentia algo parecido. Quando alguém vinha de fora, do outro lado do oceano, não compreendia... Mas quando se aquecia, virava nativo, como eu... Eu também penso nisso, esfregando o queixo, como quem esqueceu de se barbear. Porque não vale a pena negar que aqui, onde as pessoas têm tudo o que é necessário para a boa vida, felicidade... sabe, felicidade verdadeira, sorridente... é como se ainda não existisse. No vizinho, na Macy's, você acha tudo o que é necessário para a felicidade terrena. Até isqueiro com chama eterna, num estojo. Mas felicidade não se vende nem lá nem na seção de vitaminas."

Este é o tom do encerramento do romance, que revela uma nostalgia dos tempos aristocráticos, sem contudo deixar de perscrutá-los com olhar crítico. O escritor expõe seu asco e seu desprezo por nazistas e comunistas que cometeram atrocidades na Hungria, sem mitigar seu proselitismo ideológico de cunho liberal. Contudo, não poupa também o jeito americano de viver baseado no consumismo. Muitos críticos consideram "De verdade" a obra máxima do brilhante escritor húngaro.
Fabiana 16/06/2012minha estante
Excelente resenha!!! Relato claro e objetivo de um livro "profundo e denso"!


Bai 04/02/2015minha estante
Muito boa resenha. Só faltou comentar de Lázár que deixa Judit sempre pensativa.




Alexandre Kovacs / Mundo de K 17/05/2010

Sándor Márai - De Verdade
Editora Companhia das Letras - 445 páginas - Publicação 2008 - Tradução direta do húngaro por Paulo Schiller.

Um dos maiores escritores em língua húngara de todos os tempos, Sándor Márai (1900 – 1989) abandonou a Hungria em 1948 por não concordar com o regime comunista forçado do pós-guerra e, em seu auto-exílio, continuou a escrever apenas em húngaro (uma língua excepcionalmente difícil e literária, como bem destacou Chico Buarque no seu romance Budapeste), tendo sido censurado em sua terra natal até o fim da ocupação russa. Foi justamente no ano da queda do muro de Berlim e com a consequente abertura política do leste europeu, quando poderia então retornar para a Hungria, que Márai suicidou-se com um tiro na cabeça em San Diego nos EUA em fevereiro de 1989, talvez acreditasse que a vida não tinha mais sentido após a perda da mulher Lola Matzner em 1986 e do filho adotivo Janós no ano seguinte.

Neste romance, a prosa elegante de Márai assume um tom existencialista para discutir os labirintos e surpresas do amor nas relações humanas, um tema recorrente na literatura e, por isso mesmo, difícil de se tratar com originalidade. A estrutura do livro tem como base os monólogos de quatro narradores que, ao longo de quarenta anos, contam uma mesma história à partir de diferentes pontos de vista. É neste jogo de contrastes que o autor demonstra como não existe uma única verdade e como esta pode ser subjetiva, em função da cultura, classe social e, finalmente, dos interesses envolvidos.

Inicialmente, Ilonka descreve a uma amiga, durante uma tarde em uma confeitaria de Budapeste, a trajetória do seu casamento acabado e a forma como o ex-marido Péter se apaixonou por Judit, a criada da casa de seus pais. É a fala de uma mulher que ainda está ligada ao antigo parceiro, mas sabe da impossibilidade de salvação para o seu amor e deixa claro logo no parágrafo de abertura a sua dependência afetiva: "Veja aquele homem. Espere, não olhe agora, vire-se para mim, vamos conversar. Eu não gostaria que ele olhasse para cá, que me visse, não gostaria que me cumprimentasse. Agora pode olhar de novo... O homem baixo, atarracado, com o casaco de pelo de gola de marta? Não, nada disso. Aquele alto, pálido, de sobretudo preto, conversando com a garçonete magra. Está pedindo a ela que embrulhe cascas de laranja cristalizada. Interessante, para mim ele nunca comprou laranja cristalizada."

Em seguida, Péter, o ex-marido de Ilonka, narra a um amigo a sua versão sobre a separação e a fixação por Judit, obsessão que o persegue por muitos anos, mas sem ter a coragem necessária para vencer as barreiras sociais da época. O próprio Péter resume a ilusão de sua paixão: "Um dia despertei, sentei na cama e sorri. Nada mais doía. E de súbito compreendi que não existe mulher de verdade. Nem na terra nem no céu. Não existe em lugar algum, aquela. Existem apenas pessoas, e em todas há um grão da verdadeira, e nenhuma delas tem o que do outro nós esperamos e desejamos."

Trinta anos mais tarde, Judit que é a personagem mais forte do romance, conta a sua verdade para o novo namorado músico, a maneira como ela conseguiu vencer as diferenças sociais e conquistar Péter, fica patente então o seu ressentimento pela condição de pobreza da sua família e a vingança que conseguiu realizar ao conquistar o patrão: "Quando os ricos de verdade são deixados nus em pêlo, eles conservam uma fortuna escondida que nenhuma força terrena consegue tirar deles... (...) Era assim que eu me sentia quando pensava nos ricos. Não os odiava por causa do dinheiro, das mansões, das pedras preciosas. Não era uma proletária rebelde, nem uma trabalhadora com consciência de classe, nada disso... Por que não? Porque eu vinha de tais profundezas que sabia de mais coisas que as declamadas do alto dos barris."

Judit descreve também a sua relação com Lázár, famoso escritor e amigo de Péter, e o tempo que passaram juntos entre os escombros de Budapeste bombardeada à espera da tomada da cidade pelos russos. A maneira como Lázár, um apaixonado pela literatura e pelas palavras desiste de escrever por acreditar que a cultura havia acabado no país: "Por isso ele não esperava mais nada das palavras. Não acreditava que as palavras racionalmente ordenadas pudessem ajudar o mundo e as pessoas. E, de fato, nesta nossa época as palavras foram particularmente distorcidas... sabe, também a palavra simples, de pessoa para pessoa, como nós estamos nos falando agora. Isso tudo é inútil, como nos monumentos. Na realidade, a palavra humana se transformou numa espécie de choro... se transformou, com os grandes alto-falantes que chiam e gritam. Ele não acreditava mais nas palavras... mas ainda gostava delas, as saboreava, as engolia. Com uma ou outra palavra húngara ele bebia até se embriagar, de noite, na cidade escurecida..."

Na última parte do romance, em Nova York, o músico e confidente de Judit, faz uma crítica à burguesia e também à equivocada política comunista que não consegue cumprir a promessa de libertação do povo.
Fabiana 16/06/2012minha estante
Kovacs acabei de ler este livro e li sua resenha. Acredito que você tenha se equivocado quanto ao relato a seguir: ele não é de Péter conforme vc coloca em sua resenha, mas sim de Ilonka ao se deparar surpresa que nao existia de fato a "mulher de verdade" - como ela acreditava que Judit a fosse (pag.129 - o relato de Péter começa na pag. 131).
"Um dia despertei, sentei na cama e sorri. Nada mais doía. E de súbito compreendi que não existe mulher de verdade. Nem na terra nem no céu. Não existe em lugar algum, aquela. Existem apenas pessoas, e em todas há um grão da verdadeira, e nenhuma delas tem o que do outro nós esperamos e desejamos."




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