de Paula 06/09/2021
Machado poeta
Essa obra é uma das raríssimas na qual Machado se aventurou no campo da poesia. Não conhecia essa faceta do autor e confesso que sempre senti a falta de um romance mais nacionalista de sua autoria, considerando que vivia no século do Romantismo e muitos autores da época se dedicavam ao viés indígena em suas obras. Ingenuidade pura achar que uma pessoa incrivelmente brilhante como ele deixaria passar a oportunidade de homenagear os verdadeiros nativos de nosso território.
Enxergo essa coletânea mais como novelas em versos do que poesia propriamente dita. Quem já leu o autor sabe da sua tendência de escrever muito, principalmente nos contos que são supostamente menores que novelas, mas para Machado são quase romances. Isso se repete aqui e é simples conferir as histórias contadas, mais do que uma poesia de outro autor. Essa opinião não tem embasamento científico e leva em consideração apenas a minha experiência leitora.
Deixo um breve comentário sobre cada poesia que pode auxiliar alguém que faça a leitura, considerando os poucos materiais que temos sobre essa obra na internet.
Potira
É uma triste história de uma índia casada com um europeu, convertida ao catolicismo, que abandonou suas origens e obrigações tribais para viver com seu amado. Um dia, após ser sequestrada pelo seu prometido índio, torna-se escrava em sua própria aldeia, refletindo sua tristeza e preces a todo instante ao seu deus, que não é Tupã. Após o sacrifício de um inimigo, a índia chora e se desespera, com saudades da casa do seu marido. O guerreiro tenta uma última aproximação para fazê-la sua, mas Potira resiste, o que desperta a ira do índio que a mata. Machado aponta que há certo conforto na recompensa futura baseada na nova fé de Potira e sua morte foi por optar ser fiel ao marido e deus.
Niâni
Nesse poema o autor faz um paralelo com os contos de fadas europeus. A índia Niâni se casou com o índio a quem fora prometida em sua juventude. No entanto, foi abandonada pelo marido, que não permitiu que ela o acompanhasse em suas aventuras. Soube então que o marido ia se casar com outra índia e de linhagem inferior. Ao saber disso, Niâni fica muito triste, inclusive liberta seu escravo sob a condição de trocar o nome para o do ingrato marido. O desgosto ceifa a sua vida e deixa seu pai muito triste. Essa tragédia se assemelha às histórias de princesas em sua versão original (não as da Disney) e é interessante como isso é trabalhado numa história genuinamente brasileira.
A cristã nova
Essa poesia trata do sentimento patriótico que já se introduzia nas pessoas que abraçaram o Brasil como sua terra. Há um paralelo entre uma jovem moça que vive com seu velho pai e está apaixonada por um rapaz, assim como os portugueses estavam amando as terras da Baía de Guanabara antes dessa se tornar Rio de Janeiro. A jovem quer se casar, mas seu pai por já ser um ancião e só ter a filha em sua vida, quer adiar isso ao máximo, para que possa morrer antes de perdê-la para um marido. A terra de São Sebastião enfrenta uma batalha dos portugueses contra os franceses no ano de 1567, quando os compatriotas de Luís XV foram traídos pelos índios Tamoio, de quem eram "amigos" e tiveram de enfrentar os lusitanos residentes do Brasil recém descoberto. O noivo, Nuno, pede a mão da cristã antes de ir para a batalha, enquanto isso o velho pai torce para não voltar vivo, considerando que ele não tem preparo militar para a guerra, só uma sede de combater os inimigos. Nuno e os portugueses salvam Guanabara, onde hoje se encontra a praia do Flamengo. Ao retornar jubilante para a noiva, encontra o sogro no leito de morte, exclamando o quanto gostaria de morrer nos braços da filha. A jovem por sua vez não resiste a eterna briga entre amor filial e carnal, renegando a deus, sucumbe e morre em sua terra natal, nos braços do pai. Nuno segue triste seu destino e retorna a Europa, assim como o ancião, deixando a jovem cristã e o Rio de Janeiro descansarem após afaimadas batalhas.
José Bonifácio
Esse poema machadiano foi feito em decorrência de um 7 de setembro antigo, no qual se erguera um busto em homenagem ao patrono que auxiliou na independência do Brasil. Machado fala sobre como após a morte somos esquecidos, mas que Andrada é um homem que sempre será lembrado. Um dos poucos arroubos patrióticos do autor visto em suas obras literárias.
A visão de Jaciúca
Jaciúca é um índio guerreiro que retorna de uma batalha recentemente vencida por sua tribo. Encontra a todos prontos para vingança e os orienta a descansar e aproveitar a vitória. Isso causa revolta entre os demais guerreiros e ele decide contar o porquê não quer honrar a tradição da vingança de sangue. O mundo como eles conhecem está acabando. O homem branco está queimando as matas, matando as tribos e destruindo tudo a fim de expandir seus domínios. Em pouco tempo tudo será tomado. A morte passa nas tribos destruídas e não encontra ninguém vivo nem nada que mostre que um dia bravos guerreiros estiveram ali. Isso significa que a morte deles chegará em breve, então para quê gastar energia em combater os seus se serão dizimados? A angústia desse poema é latente e nos faz pensar que o mundo não mudou tanto quanto pensávamos.
Cantiga do rosto branco
Esse poema é uma tradução do francês de um pesquisador, Chateubriand, que conviveu com uma tribo indígena e escreveu um dos poemas declamados pelas mulheres índias em um concurso cultural da tribo dos Tamoios. Machado tomou a liberdade de trazer a obra ao português, o que é muito interessante, considerando o eurocentrismo, que idealiza a sua cultura e criação artística como única. Os versos tratam de um homem branco que se apaixona por uma bela índia, mas após perder suas riquezas, é deixado por outros guerreiros. Por amar a nativa, ele mendiga por sua atenção, acaba com sua própria vida, enlouquecendo de amor. O pai da moça pede para que tenha misericórdia do homem, mas ela não se importa e não o aceita de volta. Ambos morrem e a habitação fica abandonada, assim como os amantes no final de sua vida. Isso foi declamado e criado por uma mulher indígena há séculos e nos mostra que, não é porque um povo não consegue deixar registros da sua própria história, que ela não existe. Fico muito feliz de entre tantos poemas a serem traduzidos, Machado tenha escolhido esse com uma origem tão importante.
A Gonçalves Dias
Neste poema Machado homenageia aquele que foi um dos maiores poetas brasileiros, completamente apaixonado pela sua pátria, que no entanto foi estudar em Coimbra e se sentiu completamente exilado, com saudades do Brasil. Era mestiço (isto é, negro), por isso passou por preconceitos, principalmente quando se apaixonou. Morreu em um naufrágio, citado no poema como mortalha que não pode ser seguida. O autor faz a homenagem evocando as tribos indígenas do país porque Gonçalves foi um dos maiores indigenistas da nossa literatura e merecia muito este tributo pela vida e obra.
Os semeadores
Trata-se de uma homenagem aos Paulos do sertão, como citado por Machado, os Jesuítas fizeram a sua obra de evangelização, quando mais ninguém tinha coragem de adentrar nas terras áridas brasileiras. Não concordo muito com essa exaltação, mas compreendo a homenagem prestada.
A flor do embiroçu
Aqui a flor noturna do embiroçu é exaltada pela sua particularidade de só surgir à noite, enquanto o Sol está em seu auge, a mesma repousa. Isso pode ser uma ode à flor ou uma metáfora à vida noturna. Como se sabe, Machado e muitos dos seus contemporâneos eram boêmios por natureza e por isso exaltavam a sua musa de forma poética em suas obras. Há também a possibilidade de ser uma homenagem a uma mulher da noite, por quem houvera uma paixão que durante o dia precisava ser ignorada. Os poemas abrem diversas interpretações e nenhuma pode ser considerada a verdadeira, a não ser que o criador o diga.
Lua nova
Jaci, ou Lua, é exaltada neste poema como divindade, a qual é largamente festejada pelos índios que também fazem pedidos de toda sorte, conforme as necessidades apresentadas. É bonito ver o que o satélite representava para esse povo mais simples. Hoje a vemos como uma foto bonita para redes sociais e uma fonte de exploração espacial. Quem dera voltássemos a tempos mais simples!
Sabina
A história poetisada da mucama Sabina que se apaixona pelo sinhô Otávio, com o qual vive um amor nas férias da faculdade, após vê-la nua no rio, desperta a lascívia. A escrava acredita nas palavras que ela é cativa mas seu espírito livre, se deixa levar (como se tivesse muita escolha, se dissesse não, seria estuprada de qualquer forma, afinal, era o desejo sexual do patrão e devia ser saciado). Engravida e vê o amado retornando aos estudos. É maltratada e difamada pelo próprio povo por não ter se cuidado, mas a tudo perdoa porque ama. Otávio retorna casado, alguns meses depois e Sabina não suporta, decidindo se matar e impedir ao pai de ver o filho bastardo. O instinto de mãe fala mais alto e ninguém fica sabendo da sua tentativa de suicídio. Isso é uma das mais comuns histórias da escravidão no Brasil e é muito triste saber como as mulheres de modo geral, mas nesse caso, negras, sofreram por não serem suficientes e dignas de respeito e amor, sendo vistas como objetos sexuais e alívio dos homens brancos.
Última jornada
É um poema sobre a crença indígena do que acontece no pós morte. Neste caso, conta-se a história de um índio guerreiro que por ciúme matou sua amada índia, considerando que essa amava a outro. Depois de sumária violência, o índio padeceu, crendo que Tupã o havia acertado com uma de suas flechas (na realidade alguém pode tê-lo visto ou ocorrera um suicídio, isso não é deixado claro. Passam pelo julgamento de caráter e a boa vítima fará parte do alvorecer, enquanto o guerreiro assassino, irá compor a noite com as trevas de sua alma. Trata-se da visão maniqueísta de mundo muito conhecida em outras crenças ao redor do mundo.
Os Orizes
Após estudos encontrados, Machado escreve sobre uma tribo indígena da Bahia, a qual é muito determinada e fiel aos próprios costumes. Quem precisa de Tupã quando se tem corujas para matar as cobras, que infestam a região? São fortes, destemidos e guerreiros, deixando os europeus com medo, assim como os animais. Um pequeno guerreiro se encontra frente à uma fera, a qual sua mãe mata. Tentando praticar a mesma técnica, o garoto se mata com a própria flecha. Mas, a vida na tribo que vive de sacrifícios de jovens índias vai continuar com toda a certeza. É interessante perceber a exaltação que o autor faz com essa tribo tão autônoma e valente, mesmo que isso significasse problemas ao homem branco.
Essas opiniões e interpretações são completamente particulares sobre os poemas e tem por objetivo auxiliar àqueles que como eu, tem certa dificuldade de ler e interpretar poesias. Sou uma pessoa da prosa, mas saí da minha zona de conforto com toda a devoção que tenho ao mais brilhante e querido escritor da literatura universal, Joaquim Maria Machado de Assis.