mpettrus 21/05/2024
A Ilusão Alegórica de Bulgakov
?Tenho sessenta anos, tenho idade para te dar conselhos. Nunca faça nada de criminoso, não importa por qual razão. Mantenha as mãos limpas a vida toda.?
Muito pode ser dito sobre esse conto de Bulgakov, um dos escritores mais cultuados dos tempos da Revolução Russa.
A história de ?Coração de Cachorro? foi escrita em 1925. O manuscrito foi apreendido durante uma busca no apartamento do autor em 1926. Foi publicado pela primeira vez no exterior em 1968 e na URSS em 1988.
? Muitas pessoas podem encontrar diferentes significados no livro. Tudo depende da percepção de cada leitor sobre o que está descrito no conto. Para alguns, existe aqui um debate sobre estrato social, o ?Sharikovismo? e uma crítica à atitude despreocupada da sociedade russa da época.
? Para tantos outros, tem uma metáfora fortemente religiosa através do professor Philip Philipovich Preobrazhensky quando resolveu brincar de Deus decidindo modificar a natureza canina de um cachorro em humana em favor da ciência. Mas encontrei outro significado e quero contar-lhes.
?
? A história é baseada em um grande experimento. O personagem principal, o professor Preobrazhensky, representa o tipo de intelectual russo dos anos 20 do século XX, que concebe uma espécie de competição com a própria Natureza.
? Seu experimento é fantástico: criar uma nova pessoa transplantando parte do cérebro humano em um cachorro. A história contém o tema de um novo ?Fausto?, mas, como tudo na literatura ?bulgakoviana?, é de natureza tragicômica.
? Além disso, a história se passa na véspera de Natal, e a experiência torna-se uma paródia desse evento, uma anticriação. Mas, infelizmente, o cientista percebe tarde demais a imoralidade da violência contra o curso natural da vida.
?O livro requer uma compreensão da situação política dos anos 20 do século passado e da posição política de Bulgakov. Não vale a pena ler esse livro sem saber o mínimo da história da Revolução Russa, os seus múltiplos olhares sobre política, e assim compreender alguns conceitos, para perceber que quando aplicadas no contexto dessa história, elas estão muito ligadas a especificidades, perdendo com isso a universalidade de sua mensagem.
? Temos aqui heróis alegóricos: Sharik, o Cachorro, é um interessante reflexo do povo como um todo, rastejando diante da intelectualidade.
O cachorro sabe ler, isso fala diretamente da reforma educacional de Nicolau II, que não gostava dos seus servos e dos proletariados. Analisem agora pelo nosso contexto atual aqui no Brasil: o Novo Ensino Médio não permite que o vira-lata mais abandonado desse país saiba ler.
? Philip Philipovich Preobrazhensky é um reflexo da intelectualidade que conduziu o povo à Revolução e a utilizou para os seus próprios fins. O professor Preobrazhensky (cujo nome significa ?transformação? e carrega conotações divinas) era frequentemente visto, especialmente na glasnost, como um porta-voz heroico contra o terror bolchevique e o filistinismo da vida pós-revolucionária.
? O Doutor Bormenthal é aqui um reflexo de outra parte da intelectualidade, aquela que é capaz de usar a força para atingir seus objetivos e aquela que permanece. Foi ele inclusive quem criou sanções para punir o ?mal? comportamento do Cachorro quando ele perdeu sua natureza canina e adquiriu a natureza do comportamento humano.
?A obra nos diz que a Revolução mudou o modo de vida do homem, homogeneizou-o, expulsou-o de seus quartos criando uma sociedade de marginalizados.
Aliás, um dos temas principais é a pressão sobre a habitação coletiva e muito mais em termos gerais, no espaço privado: uma questão que Bulgakov enfrentou na década de 1920 em Moscou.
?O professor é inflexível, diante da situação habitacional para cumprir as exigências da comissão, e defende a ideia de que precisa de um grande número de quartos para seu trabalho e estilo de vida. O conto, em última análise, argumenta em favor de uma vida privada livre de controle estatal.
?A ilusão alegórica da narrativa bulgakoviana nesse conto me pareceu permeada de ambiguidades. Evidentemente, a maior parte dessa confusão foi desfeita por eu ter conhecimentos prévios das ideias políticas do autor.
? Bulgakov notou as realidades da vida e descreveu-as com sarcasmo: nivelamento, a questão da habitação, feminismo, emancipação, ideias comunistas, controlo sobre as pessoas, a psicologia dos proletários, e assim por diante.
? Dostoiévski e Pushkin também apontaram que um gênio deve correlacionar suas ações com Deus (seu ideal moral), que sem Deus não há moralidade, não há um bem verdadeiro.
E indivíduos como Preobrazhensky, um intelectual que trabalha para as pessoas exalando altruísmo, mas também ganha dinheiro com sua luxúria, um cientista muito inteligente, culto e de classe abastada, seguindo sua paixão - a ciência, mas não a reconciliando com a natureza, com Deus - em última análise, age em detrimento de si mesmo e dos que o rodeiam.
? Talvez Bulgakov não quisesse mostrar isso, mas apenas simplesmente descrever o clima e as tendências da sua época, mostrando os resultados de sua paixão pelas ideias liberais.
E como você sabe, as ideias liberais proclamam basicamente a liberdade individual sem Deus, ou seja, as pessoas querem criar um paraíso na terra com suas mentes e ações, contornando a ideia de Deus. E quanto mais as pessoas mergulham na ideologia da ?vida pelo prazer?, mais os cientistas e homens de poder se esforçam para satisfazer esses prazeres.
? Essa história combina três formas de gênero artístico: fantasia, distopia social, sátira. A história é lida de uma só vez. Muitas coisas engraçadas e tristes. Certos momentos nos fazem pensar. O estilo de escrita é acessível e de fácil compreensão para o leitor. Mas lembrando que você necessariamente precisa saber alguns capítulos da Revolução Russa e da própria vida do autor.
? A linguagem é pitoresca e aforística: ?A devastação não está nos armários, mas nas cabeças?. De fato nunca deixarei de admirar a genialidade de Mikhail Afanasyevich Bulgakov e suas criações. Apesar de não concordar com muitas de suas ideias.
???????????????