notmuchcompany 09/07/2023
"Sua beleza era como a própria Suíça - deslumbrante, mas estéril - e seu estoicismo teutônico fazia as pessoas ao seu redor parecerem libertinas emocionais ou, para usar um termo mais psiquiátrico, malditos casos perdidos".
Seria julho o mês que define minha leitura do ano? Ou o mês onde eu descubro que meu gosto por literatura está cada vez mais espiralando pro esquisito?
Foi assim em 2022 (quando descobri que existe um tropo chamado Unhinged Women e eu nunca mais me senti satisfeita lendo romances ou histórias lineares que não me entreguem uma protagonista perturbada das ideias, com bagagem traumática sendo apresentada em camadas densas de cinismo, escuridão e questionamento das normas sociais) e aconteceu agora em 2023 de novo, com a leitura de Big Swiss.
Nos três primeiros parágrafos eu já sabia que tava ferrada, porque a autora conseguiu compilar tanta informação em tão pouco espaço que me colocou direto no meio de duas personagens, encarando a Big Swiss e esperando saber ainda mais dela e do que ela e Greta me trariam.
Além de estabelecer um visual sólido, Big Swiss tem dimensões internas das personagens que continuam se desenvolvendo por todo o livro, e quando acabou eu fiquei querendo mais. Raramente eu imagino o que acontece depois da última página de um livro, mas nesse eu imaginei, e ainda agora a história paira na minha mente.
Big Swiss (Grande Suíça) é o apelido que a protagonista, Greta, dá pra mulher com a qual ela fica obcecada, porque ela é grande e... bem, suíça. Ela surge na vida de Greta por intermédio de um terapeuta sexual encapsulado de charlatão, mas que desenvolve de maneira bem decente os temas da história. Greta trabalha pra esse terapeuta, transcrevendo as sessões com os pacientes para que ele as use em um livro depois. Então Greta tem acesso a muito material psicológico das pessoas da pequena cidade onde mora, e assim conhece Big Swiss - ou Flavia, o nome real dela.
Flavia sofreu uma violência física brutal há alguns anos, mas não é por isso que ela procura terapia. Ela é uma ginecologista, casada, que quer filhos, mas nunca teve um orgasmo na vida.
Greta se intriga pela maneira como Flavia lida com trauma, e com a visão estóica que ela tem das coisas. E pela voz. Aliás, eu adoraria ouvir a voz de Flavia, porque ela é descrita com tanta ênfase, que me deixou curiosa pra saber se eu reconheceria voz semelhante, caso ouvisse.
"Era uma voz onde você poderia prender seu suéter, ou talvez lascar um de seus dentes, mas também era doce o suficiente para chupar, para dormir com ela na boca".
Então quando Greta de fato reconhece essa voz no parque canino, ela entra em um lesbian panic básico e começa a se enrolar com Flavia. Por conta do contrato de confidencialidade com o terapeuta, seu empregador, Greta mente o nome e a idade (Greta tem 45, Flavia 28), e a princípio tenta se mostrar como uma pessoa detestável, pra afastar Flavia.
Não funciona, claro. As duas se envolvem cada vez mais e começam a ter um caso (puritanos de "não leio plot de traição" já podem se dirigir à saída). E daí pra frente, é só pra trás.
Um dos blurbs do livro diz que ele é romântico e cínico. Na minha experiência, romântico não é. Pelo contrário, a relação delas é descrita sem qualquer véu de romantização. Mesmo o sexo e a maneira como elas se exploram fisicamente são bem diferentes do que vejo por aí. Mas não de um jeito negativo. Eu achei intrigante e... nítido. Como se a autora estivesse disposta a ser o mais cruamente real possível (o que me lembrou Milk Fed, mas melhor).
E é aí que entra a parte do cínico. Isso, de fato, o livro é - praticamente em cada frase ou parágrafo. Os diálogos, as descrições, as backstories, as relações, os questionamentos, a condução dos temas... tudo pareceu ser construído para demonstrar desapego às convenções sociais. E eu amei? Claro que amei. Eu poderia ter lido mais 100 ou 200 páginas desse mundo.
Entre os temas tem trauma, suicídio, resiliência, adultério, sexualidade e maturidade, além de abordar cachorros e abelhas e mini jumentos de um jeito que eu nem saberia como explicar aqui.
"...ela era reta, flexível, de alguma forma mais alta sem roupas e coberta por minúsculos pêlos loiros. Então, menos como aspargos brancos, mais como pêssego branco. Greta nem sempre foi fã - ela preferia nectarinas e raspava tudo, até os antebraços -, mas a penugem fazia Big Swiss parecer mais resistente e mais doce, e Greta quis devorá-la imediatamente".
Big Swiss não foi uma leitura perfeita (eu aceitaria de bom grado um pouco mais de desenvolvimento da relação entre as duas, ou de processos mentais e tridimensionalidade), mas foi ótima no sentido de que me fez ler de madrugada, reorganizou pensamentos, me divertiu com o inesperado bizarro e me apresentou universos particulares dos quais eu não teria a menor paciência de chegar perto na vida real. Por acaso é exatamente pra isso que eu leio.
O livro vai virar série adaptada pela HBO, com a Jodie Comer (Killing Eve) no papel de Big Swiss, e confesso que não fiquei empolgada com essa escolha, mas vamos ver se rende.