Vinicius 20/02/2024
A vida nos pertence precisamente quando escapa
Gosto quando um livro não entrega tudo na primeira leitura. Pelas diversas camadas que ele possui, sinto que uma releitura trará um outro olhar e novas descobertas desse grande mosaico-labirinto-quebra-cabeça, ao menos para mim...
Não lembro exatamente como cheguei ao livro, mas recomendo chegar assim, sem pretensão alguma, desconhecendo a história e aberto para explorar 400 páginas, ainda que algumas num ritmo mais lento. Por isso, caso goste de saber o mínimo possível, pare de ler a resenha aqui, pois comentarei sobre alguns temas, ainda que sem spoiler.
Um jovem escritor senegalês tem contato com um livro que muda radicalmente sua forma de ver o mundo, um divisor de águas. O impacto sobre o jovem faz com que ele inicie uma investigação em busca do autor TC Elimane, que não é visto há anos.
Essa jornada pela busca pelo autor é a própria metáfora da busca por si, por sua identidade e pelo sentido da escrita (da vida?).
"Cada um de nós deve encontrar sua pergunta. Por quê? Para obter uma resposta que desvelará o sentido de sua vida? Não: o sentido da vida só é desvelado no fim. Não buscamos a pergunta para descobrir o sentido da vida. Nós a buscamos para encarar o silêncio de uma pergunta pura e intratável. Uma pergunta que não contaria com nenhuma resposta. Uma pergunta cujo único objetivo seria lembrar àquele que a faz a porção enigmática que sua vida carrega".
Como o círculo de amigos do narrador é feito de escritores há diversas reflexões sobre o que os motiva, o que os faz se tornarem escritores e o que é ser um escritor africano vivendo em Paris. (Aqui me lembrei de um debate do livro A alma imoral sobre traição vs tradição)
"A criança que fomos sempre lançará um olhar decepcionado ou cruel sobre o adulto que nos tornamos, mesmo que esse adulto tenha realizado seus sonhos. Isso não significa que a idade adulta esteja, por natureza, condenada, ou seja falsa. Simplesmente, nada nunca corresponde a um ideal ou a um sonho de infância vivido em sua cândida intensidade. Tornar-se adulto é sempre uma infidelidade à nossa mais tenra idade. Mas aí reside toda a beleza da infância: ela existe para ser traída, e essa traição é a origem da nostalgia, o único sentimento que permite, talvez um dia, no outro extremo da vida, reencontrar a pureza da juventude".
Não devemos esperar um romance de investigação com pistas e soluções, mas sim ter contato com diversos relatos que se encaixam (ou não) para mostrar um pouco mais da figura misteriosa de Elimane.
Mohamed Mbougar Sarr entrega um livro riquíssimo, esculpido cuidadosamente em cada frase, que permite abertura de debates sobre escrita, racismo, colonização, decolonização, família, sociedade, vida...
"Você sabe: a colonização semeia nos colonizados a desolação, a morte, o caos. Mas ela também semeia neles - e esse é seu feito mais diabólico - o desejo de vir a ser o que os destruiu".
Pra mim o tema que costura todos os demais é a solidão, essa jornada única da nossa subjetividade, que é tanto a origem quanto o destino do nosso labirinto particular.
"E a verdade do coração de Madag, você se diz, a verdade de seu livro, é a história do último sacrifício de um homem: para alcançar o absoluto, ele mata sua memória".