aimenlisant 19/09/2023
Eu, como acredito que foi com a maioria, cheguei a esse livro através de um comentário que viralizou no twitter. Li um dos tweets daquela thread que dizia que nesse livro os garotos de programa de um clube recebiam nomes de drinks como seus nomes no trabalho e fiquei boquiaberta quando li que o protagonista, um jovem coreano, era chamado de Soju na boate. Eu pensei "meu Deus, não é possível, a autora não faria isso". Mas ela fez.
Comentei minha leitura inteira no Twitter e foi um processo bem lento, até. O livro cumpre o que promete a respeito de ser um romance erótico. Mas a autora esqueceu de avisar que, junto disso, o leitor teria que enfiar racismo, xenofobia e fetichismo goela abaixo. E não adianta alguém vir me dizer que ela trabalhou isso no livro. Não é disso que to falando.
Pra começar, Odara é uma mulher preta que ama sua cor, seu corpo e tudo o mais, mas que está sempre em relacionamentos terríveis e percebe que isso tem um atravessamento racial; os homens não a apresentam como namorada, a usam, não se importam com os sentimentos ou prazer dela. Logo no começo do livro ela vai transar com um cara branco com quem conversa há tempos e antes disso ele a humilha, chama ela de morena (o que causa incômodo nela) e na hora do sexo ela não está mais confortável, excitada ou sequer com vontade de transar. A autora narra, sem aviso nenhum, um estupr0 que não é ao menos notado pela personagem naquele momento. Só bem mais pra frente que ela fala sobre precisar passar a parar ao invés de se deixar ser usada sexualmente. Há outras cenas de assédio sexual sofridos por ela.
Ela conhece através da patroa (que é mãe de uma amiga dela que trabalha no salão com ela, ou seja, as três convivem diariamente) um clube no Rio onde garotos de programa estão à disposição de um público majoritariamente rico, feminino e branco, sendo esses caras expostos em um "cardápio", ideia que leva aos seus codinomes com drinks. Essa ideia dos nomes fictícios poderia ser sensual, até, se não fossem racial e étnicamente motivados. O garoto de programa coreano é Soju, dois negros são Caipiroska e Black Velvet e tem um libanês, Arak. Se você não vê problema nisso, vai em frente; lê e dá 5 estrelas pra esse livro. Aproveita e favorita.
Existe uma problemática imensa que só pode ser ignorada quando escolhemos ignorar, também, a forma como pessoas negras e asiáticas são violentadas com hiperssexualização, fetichismo e estereóripos racistas a respeito de seus corpos, virilidade, disposição sexual e tantas outras coisas.
Odara vai a esse clube numa tentativa de tomar o controle do próprio prazer. Dá pra ver que a autora se esforça pra fazer a história ser sobre o desenvolvimento da autoestima da protagonista e de uma relação amorosa dela com o Douglas (Soju), em que ela possa finalmente se sentir valorizada enquanto mulher. O problema está em todo o resto. Juliana Anferoli escolheu uma maneira ainda muito violenta de retratar as coisas que tanto Odara quanto Douglas vivem, colocando cenas explícitas de racismo e xenofobia durante todo o livro, tirando as partes em que isso é vivenciado pelas relações de poder entre Douglas e a cafetina e dona do clube, assim como outros detalhes que citei aqui e os que escolhi não falar.
Todas essas coisas vêm disfarçadas de tentativas não alcançadas de criar uma atmosfera de empoderamento preto e feminino. Isso sem falar da forma como a história do Douglas sugere uma relação esquisitíssima entre ele e o trabalho como acompanhante, garoto de programa, o que seja. Veja bem, o problema não é ser um livro erótico, não é ter sexo explícito. O problema é ser descaradamente um livro que coloca pessoas racializadas em subjugação em relação aos seus patrões (ou senhores?) que vendem seus corpos sexualmente falando, ainda de uma forma que sugere gratidão da parte do Douglas e de seus colegas, afinal Aurora e Levi (os patrões, são um casal) os salvaram de suas vidas miseráveis.
Dá pra perceber que a autora tem capacidade de escrever algo melhor se aplicar parte do seu empenho em estudos a respeito de relações raciais. Escrever protagonistas pretos e asiáticos da forma como ela fez aqui não é sinônimo de representatividade, é violência racial usada como entretenimento. Foi um incômodo muito grande ler esse cenário em que homens racializadas (mas não somente, tem outros que são brancos) são trabalhadores sexuais, que servem pra satisfazer fetiches de gente branca e dar dinheiro pros patrões que também são brancos. A situação é tão esquisita que o próprio Douglas fica ansioso e preocupado, com medo de denunciar aos seus patrões quando uma das clientes do clube o humilha e é abertamente racista e xenofóbica com ele.
Acredito que autores brancos podem, sim, estudar e escrever livros em que pessoas como eu não são objeto de violência, seja ela explícita ou velada. Também acredito que dá pra escrever livros assim (mas pensa, qual é a necessidade e de onde vem o interesse querer produzir ou se divertir com algo que coloca gente historicamente subjugada nessa posição?) sem ser violento da forma como esse aqui foi.
Repito, acredito que a autora teria a capacidade e habilidade de fazer algo muito melhor. Ela foi capaz de escrever um livro ambientado no Rio que realmente parece se passar no Brasil; não é um daqueles que parece ter sido mal traduzido. Ela também consegue descrever os personagens que quer sem dar dúvida sobre sua cor, e essas coisas que gente branca parece nunca conseguir fazer. Ela tentou abordar ótimos temas mas de uma forma que sugere não ter contratado leitura crítica ou sensível. Juliana Anferoli também conseguiu, no meio dessa bagunça terrível, escrever personagens interessantes, um casal legal e fofo. Mas cercado de todo o resto, não consigo avaliar bem.
0,5 🌟.