Marc 03/08/2023
Quem leu “Destino Adiado” sabe do que Gibrat é capaz. É apenas a segunda HQ dele que leio, mas já o considero um de meus autores preferidos nesse gênero. É um excelente escritor, um ilustrador magnífico e muito detalhista. O mundo é muito bonito a partir de suas lentes. Não é o tipo de quadrinista que usa imagens fortes e grotescas, nem retrata a violência como forma de chamar o leitor para o realismo. Talvez por isso suas histórias sejam tão elogiadas, pois mesmo tratando de um período terrível, não mostram pedaços de corpos ou maníacos homicidas dentro de trincheiras.
Ele está preocupado em descrever como a França viveu sob a ocupação nazista. Pela persistência do tema, 80 anos depois, podemos imaginar que a ferida da Segunda Guerra ainda não cicatrizou e um povo tão orgulhoso de sua história, ainda se sente envergonhado por tantos terem colaborado com os invasores. A guerra afeta a todos, de uma forma ou de outra, e ele está mostrando como pessoas normais reagiram naquele momento.
Existem algumas referências e personagens que aparecem de “Destino Adiado”. Mas os personagens principais são bem diferentes, com visões de mundo tão distintas que a ligação entre eles chega a parecer um pouco inverossímil, embora tudo seja possível. Se na primeira história Julien fugia do trem que o levaria ao campo de batalha e não se importava de colocar várias pessoas em risco apenas para se proteger, aqui, Jeanne é igualmente protegida da guerra, mas não por sua vontade. Ela nem percebe muito bem que o homem que foge com ela da delegacia a está protegendo de uma maneira inusitada.
E mesmo sendo Jeanne a personagem principal, é François quem realiza a maior parte das ações perigosas. Ele decide protegê-la enquanto furta casas desocupadas a noite na cidade e leva informações para seus contatos e informantes. Um malandro, cínico, mas que se torna a referência moral da história. A virtude não escolhe seus portadores por características acessórias, por assim dizer. Mesmo sendo um malandro, acostumado a pensar em si mesmo, ele assume sem estardalhaço a proteção da garota e faz o possível para evitar que a guerra alcance ela e seus amigos. E ainda discute sobre sua posição ideológica de forma muito realista: ele afirma que os comunistas desejam apenas o controle da sociedade, que buscam meios de submeter as pessoas a seu controle e não aceitam dialogar. Enfim, todas as verdades da história são pronunciadas por ele.
Mas gostaria de voltar ao ponto da questão do imaginário social francês em relação ao colaboracionismo. Muitas figuras entraram para a história como fazendo parte da resistência, mas é preciso investigar um pouco mais os fatos para conhecermos a verdade. Sartre, por exemplo. O intelectual que se tornou referência na cultura francesa e que esteve atrelado à resistência por algum tempo, até se dedicar à elaboração de seu livro mais importante: “Ser e o nada”. Embora ele seja visto como uma figura fundamental nessa direção, sua esposa, Simone de Beauvoir trabalhava na Rádio Vichy, que era francamente propagandista da ideologia dos dominadores do país. Até que ponto, portanto, Sartre corria riscos ou era um integrante confiável da resistência? No entanto, seu nome entrou para a história também por esse ato heroico. Menciono isso apenas como um dentre diversos exemplos de personalidades da época que lutaram sobretudo para si e que souberam, à medida que os ventos mudavam de direção, trocar de vestes e ainda assim continuar sendo admirados, praticamente hipnotizando a opinião pública e entrando para a história como os mocinhos. Acredito que essa questão é ainda tão marcante no imaginário desse país que não é a toa que apareça ainda em filmes, livros e na cultura pop em geral. Mas Gibrat parece ter uma opção diferente quando trata desse tema: ele não usa as personalidades da época, está mais preocupado em mostrar como as pessoas comuns sofriam.
A história da ocupação, daqueles que colaboraram, dos que podiam ter resistido e não fizeram nada ou estiveram ao lado do inimigo, assim como daqueles que diziam lutar e colaboravam, enfim, esse período ainda não foi digerido e está muito presente na sociedade francesa. Um pais que havia lutado, que tivera uma Joana D’Arc, lutando e libertando seu povo, agora estava de joelhos e, pior, capitulando com o inimigo, esperando ser poupado por ele — numa palavra, contra toda a tradição do povo, a França se tornara covarde.
Eis que é aqui que se revela seu pensamento, afinal. Ele está mostrando um bom rapaz (Destino Adiado), se tornando um egoísta e depois, nessa HQ, mostra um egoísta se sacrificando por algumas pessoas. A guerra teria essa característica, portanto: aqueles que saíam aos berros exibindo suas virtudes acabavam se tornando os maiores canalhas possíveis e outros, que não tinham nada a ganhar com o sacrifício, ainda mais sendo anônimos, se arriscavam todos os dias. No caso do personagem de François é ainda mais interessante como ele é construído, porque seus defeitos terminam se mostrando um meio de defesa dentro do caos que estavam vivendo. De fato, embora o conheçamos nessa atividade, ele tem muito pouco a ver com ela, e, ainda assim, não cria racionalizações sobre o que faz, quando debate política com Jeanne, que tem uma visão romântica do comunismo.
Não é preciso recorrer a imagens grotescas dos campos de batalha para mostrar que a guerra destrói a moralidade de uma época. Há medo e revolta nas pessoas comuns, que sonhavam com o dia em que a vida se aproximaria novamente da “normalidade” (essa palavra que ganhou um novo significado em pleno século XXI e que nos ajuda — se tivermos esse olhar histórico, de perspectiva — a entender como as grandes mudanças sociais nos colocam em conflito).