Juju 13/11/2023
Nem todos os sonhos se concretizam
Essa é a história de quatro indivíduos cujos caminhos se conectam em uma sequência de tragédias e autodestruição. Sara Goldfarb passa seus dias em frente à televisão precária, assistindo aos seus programas preferidos e de qualidade questionável, consumindo alimentos calóricos, ainda que um grande vazio e tristeza a consumam pouco a pouco todos os dias. A carta que chega pelo correio, oferecendo-lhe uma chance de aparecer em um desses programas que tolamente idolatra, passam a reger sua vida e, acredite, ela fará qualquer coisa para caber naquele vestido vermelho. Enquanto isso, Harry Goldfarb e seu melhor amigo negro Tyrone C. Love, desbravam as ruas do Brooklyn e adotam um estilo de vida vagabundo e ocioso, alimentando seu vício em heroína da melhor forma que podem, sonhando e movendo seus parcos recursos, esforços reticentes para criar o próprio império de drogas. Nessa trágica equação ainda temos Marion, a típica garota judia que rebelou-se contra a família abastada para viver da própria arte e cuja carência solitária fez com que se aproximasse das substâncias ilegais a fim de afanar a dor e sentir-se ao menos um pouco amada. Seu principal desejo é conseguir todo o dinheiro que puder para viajar o mundo. Todos eles almejam grandes coisas, de alguma forma, a ilusão do famigerado "sonho americano" corre por suas veias, tão nocivo e tóxico quanto a própria heroína que estimam. Não se engane, nenhum deles terá um final feliz. Através da escrita arrebatadora de Hubert Selby Jr. vivenciamos em cores, sons e cheiros, a cacofonia de vidas completamente destroçadas e perdidas, carcaças vazias, enquanto o grande monstro se agiganta espalhando lenta e cruelmente o seu rastro de destruição. Uma crise de saúde pública emerge. A batalha contra os opioides é uma epidemia maligna que destrói lares e aniquila sonhos como ninguém.
Hubert Selby Jr. escreveu alguns bons livros com um toque de lirismo, os mais conhecidos são Última Saída Para o Brooklyn e Réquiem Para Um Sonho, ainda que muitos considerem The Room sua obra prima. A história de vida do autor é no mínimo bastante triste e sofrida desde a infância, tendo ele mesmo se viciado em drogas por um período de tempo e experienciado as duras consequências do abuso de substâncias. Acredito que é justamente por esse motivo que o mesmo escreve suas obras de uma forma muito crua, sincera e impactante. Quando o diretor de cinema Darren Aronofsky adaptou o roteiro de Selby para as telas nos anos 2000, admitiu que o livro o deixou profundamente perturbado e por anos não foi capaz de finalizá-lo. Quando finalmente o fez, Aronofsky sentiu que precisava compartilhar as palavras de Selby - que segundo ele queimavam como fogo - com o mundo e o resultado foi um dos filmes mais bem produzidos, tocantes e identificáveis que temos sobre a crise de opioides e o abuso de drogas, estrelado por um jovem e promissor Jared Leto e a talentosa Ellen Burstyn. Se você nunca assistiu, eu recomendo bastante.
Ler o livro que deu origem ao longa foi uma experiência completamente diferente para mim. Quando comecei o primeiro capítulo a ausência de travessões para as falas me fez estranhar profundamente, no entanto, se torna bastante evidente que este é apenas um recurso do qual o autor se utiliza para ditar a cadência sufocante de sua obra. É algo tão intenso e impactante que você verdadeiramente se sente capturado pelas palavras, por um ciclo, uma cadeia de eventos que consegue vislumbrar o terrível fim. A alegria das personagens é passageira e efêmera, uma doce e ingênua ilusão. Nesse livro, Selby critica abertamente a ideologia do "sonho americano". A ideia de que se você se esforçar, trabalhar duro, independente de suas origens ou classe social, conseguirá atingir tudo aquilo que almeja na terra das oportunidades - os Estados Unidos -, mesmo que no ínterim isto lhe exija árduos e abundantes sacrifícios. A realidade, bem sabemos, não é exatamente essa e aqui consigo compreender que o autor nos diz que não há nada de errado em levar uma vida normal, pacata e tranquila ao lado de, por exemplo, de uma esposa amorosa e filhos, ou simplesmente fazendo aquilo que você gosta de forma honesta. Muitas vezes a ilusão e a busca constante pelo "sonho americano" cegam o indivíduo para as coisas que realmente importam e podem agregar em algo para a sua vida a longo prazo, e, é claro, que sempre existe o risco de se esborrachar contra um muro ou uma porta fechada de negação. Nem todos os sonhos se concretizam e é preciso calcular os seus riscos. A forma como Hubert Selby Jr. é capaz de escrever sobre essa ausência, o vazio que passa a ser preenchido momentaneamente pelas drogas é algo fenomenal. A esperança, a alegria passageira, os sonhos inalcançáveis e o vício. O terrível vício que corrói e aos poucos mata a alma até que já não reste mais nada além de nuvens e dias cinzentos. Eu achei o livro ainda melhor do que o filme, simplesmente sensacional. Brutal, cru e honesto, doa a quem doer. Uma obra de arte que merece as 5 estrelas, figurando entre os melhores títulos que tive a oportunidade ler esse ano.