jota 27/05/2023BOM: através de um personagem enigmático, Auster explora a metalinguagem e nos conduz pelos labirintos da memória, identidade e linguagem Lido entre 22 e 27 de maio de 2023.
Até agora foram cerca de dez livros de Paul Auster lidos e pelo menos três deles achei ótimos – Invisível (Companhia das Letras, 2010), Leviatã (idem, 2001) e O Livro das Ilusões (idem, 2002). Mas este Viagens ao Scriptorium me pareceu tão fora da curva daquilo que eu pensava dobre a literatura dele que, desde os parágrafos iniciais, pensei estar lendo algo mais próximo de Kafka ou Borges do que propriamente de Auster. Embora em seus demais livros também possamos encontrar personagens curiosos vivendo situações extraordinárias, como Mr. Vertigo, do livro homônimo, para citar apenas um.
A capa brasileira me pareceu OK, mas buscando informações para escrever esses comentários, acabei encontrando algumas bem diferenciadas em certas edições norte-americanas. Numa delas vemos um quarto com janela que parece estar imaculadamente limpo, uma cama que parece confortável, uma escrivaninha com cadeira (que remete para o título do livro) e um belo cavalo branco parado no meio do cômodo. Sobre a escrivaninha estão pilhas de papeis e fotos, informação que nos é dada depois de iniciada a leitura.
Às vezes essa capa reaparece em outras edições, com tudo exatamente igual, mas sem o cavalo – talvez para não assustar o leitor que não aprecia muitas “invenções” quando lê. Pelos parágrafos iniciais da obra e depois, por essa capa estrangeira, é que Kafka e Borges me vieram à cabeça imediatamente... Bem, com ou sem cavalo, nesse quarto vive o enigmático Mr. Blank, um homem não tão jovem, que passa por um processo amnésico, então os objetos presentes no cômodo e até mesmo a parede são identificados com uma etiqueta com o nome: parede, escrivaninha, cadeira etc. com a função de ativar sua memória.
Ele não sabe, mas há uma câmera localizada no teto que o observa o tempo todo enquanto ele recebe várias visitas que parecem fazer com que mais ele esteja enclausurado num hospital ou sanatório do que numa prisão. De um modo ou de outro todos eles têm algo a ver com o passado de Mr. Blank e alguns estão ali para acertar contas com ele, por ter mandado muita gente em missões perigosas no exterior. É alguma coisa que não sabemos lá muito bem o que tenha sido, mas que encontra ecos na guerra civil americana do século XIX.
Ficamos sabendo que agora a guerra envolve os Territórios no exterior (o que seriam eles?) e um dos personagens da história que Blank está lendo é um agente duplo que para lá foi enviado a fim de fomentar a rebelião entre as tribos. Ou como diz alguém nada “(...) muito diferente daquilo que nós fizemos com os índios após a Guerra Civil. Ponha os nativos em pé de guerra e depois liquide com eles.”
Quer dizer, temos a história de Blank encerrado nesse quarto, a ler outra história que de algum modo tem a ver com ele, com suas ações no passado. Pura metalinguagem... E mesmo com várias pistas fornecidas pelo texto que lê e pelas lembranças que os visitantes tentam despertar nele, está difícil para ele descobrir o que faz ali enclausurado. Um pouco complicado, não? Não somente Mr. Blank, nós também, os leitores, somos convidados a participar do jogo literário de Auster, onde se cruzam memória, identidade e linguagem.
Como escreveu o Financial Times no lançamento de Viagens ao Scriptorium, “Auster sempre recompensou seus leitores estimulando sua inteligência. Ele os transforma em detetives, deixando pistas (algumas delas até falsas) que ligam seus livros em uma complexa teia de alusões que se perpetua de livro em livro.” É por aí mesmo...