Ana Sá 06/10/2021
Para conhecer intelectuais negras brasileiras
[não vai dar para resenhar sem desabafar; é dia de "resenhão com emoção", apesar de o livro ter apenas 99 páginas]
Se você quiser ter uma ideia do que significa "epistemicídio", sugiro que leia este livro tendo em vista a violência do apagamento histórico sofrido por essas intelectuais negras brasileiras, que por décadas foram ignoradas pelos livros didáticos, pelos livros de História, pelos cursos de graduação e de pós-graduação do país. Para nossa sorte, isso vem mudando um pouco (e, infelizmente, aos poucos, devagar), e essa coletânea (bem breve) é uma boa porta de entrada para a descolonização de pensamento que esses saberes, até então bastante marginalizados, têm a oferecer.
"Interseccionalidades: pioneiras do feminismo negro brasileiro" é um e-book baratinho (paguei menos de R$5,00) que compila parte de uma das (ótimas) obras sobre feminismo recentemente organizadas por Heloisa Buarque de Holanda. Nele, temos acesso a alguns poucos artigos de Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento e Sueli Carneiro, todos tocando aspectos da relação entre raça e gênero no Brasil. São eles:
1. "Racismo e sexismo na cultura brasileira" (1984), Lélia Gonzalez.
Com seu tom irônico, quase debochado e despojado, Gonzalez explora as noções de "mulata", "doméstica" e "mãe preta".
2. "A mulher negra no mercado de trabalho" (1976), Beatriz Nascimento.
Artigo sobre a herança escravocrata nos trabalhos atribuídos a mulheres negras no Brasil.
3. "A mulher negra e o amor" (1990), Beatriz Nascimento.
De forma muito sensível e original, Beatriz Nascimento propõe reflexões sobre a condição amorosa, e não sexual, da mulher negra no país, e sobre como fica o universo dos afetos quando uma mulher preta ocupa um espaço de poder/ de destaque social.
4. "Mulheres em movimento: contribuições do feminismo negro" (2003), Sueli Carneiro.
Discussão sobre a necessidade de "enegrecer o feminismo" e apresentação de um breve panorama histórico das conquistas do movimento feminista negro no Brasil, tudo isso considerando diferentes esferas: saúde, mercado de trabalho, violência, entre outros. Uma aula completa!
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Antes de encerrar, é inevitável recordar aqui a provocação feita por Angela Davis em uma de suas visitas ao Brasil:
"Eu me sinto estranha quando sinto que estou sendo escolhida para representar o feminismo negro. E por que aqui no Brasil vocês precisam buscar essa referência nos Estados Unidos? Eu acho que aprendo mais com Lelia Gonzalez do que vocês poderiam aprender comigo".
Esta é a segunda vez que leio este livro, mas a sensação se repete: me vi diante do tamanho da minha ignorância (salve Angela Davis!); repensei o que eu entendo por feminismo enquanto mulher branca de classe média; compreendi ainda mais a perversidade do racismo estrutural, já que me peguei pensando no número de instituições (editoras, escolas, universidades) que estiveram envolvidas no apagamento do trabalho dessas mulheres.
Enfim... Mais uma resenha em que falei de mim para falar de um livro, mas não tem jeito: a leitura e a releitura desses artigos foram como tapas na cara da minha branquitude.
Não sugiro que leiam este livro "apenas" porque se trata de textos escritos por mulheres negras; eu recomendo a leitura porque perdemos muito em não ter acesso a interpretações tão exatas do Brasil passado e atual. Elas são, antes de tudo, intérpretes ímpares deste país.