Artemisia1 19/08/2013Uma cicatriz significa "Eu sobrevivi"Sempre que via este livro nas prateleiras das livrarias pelas quais passei, a capa me fisgava: Intrigante, assim como o título. Mas foi só depois da indicação de uma amiga muito querida que acabei comprando.
Essa história é contada por dois pontos de vista alternados, o que deixou tudo realmente muito mais interessante. E isso acontece por dois motivos: O primeiro é porque desta forma podemos ter uma visão mais ampla da história, coisa que geralmente não acontece nos relatos em primeira pessoa tradicionais. Achei esse artifício que o autor usou muito bom, pois possui o benefício da amplitude da terceira pessoa aliado ao tom intimista que o uso da primeira pessoa dá ao relato. O segundo motivo para a história ser tão arrebatadora é que a narrativa não possui uma cronologia típica, pois vai e volta no tempo de acordo com o personagem que a está narrando, característica essa que não chega a nos deixar perdidos, e serve para uma quebra de monotonia no texto.
Li esse livro a mais de um mês, e o motivo de ter demorado tanto para resenhá-lo foi justamente o problema com o qual me deparo agora: Dificuldade em falar sobre a história sem de fato contá-la, o que faria a narrativa perder o encanto. Bem, o que posso dizer é que este livro me lembrou um pouco “Muito Longe de Casa”, de Ishmael Beah, por tratar sobre os horrores vivenciados em alguns países da África, seja por exploração de petróleo ou guerra civil. Pequena Abelha trata no geral sobre o problema das pessoas que fogem da guerra e da perseguição em seus países e tentam se refugiar na Inglaterra. Esse é especificamente o caso de Pequena Abelha, nossa protagonista, uma nigeriana que conseguiu fugir do horror de seu país, mas ao chegar à Inglaterra, é presa no Centro de Detenção de Imigrantes de Black Hill. O ponto de partida é sua libertação desse Centro e seu reencontro com Sarah Summers e Andrew O’Rourke. O primeiro encontro deles, numa praia da Nigéria, havia mudado para sempre a vida de todos eles, mas para descobrir exatamente o porquê, somente lendo o livro.
Pequena Abelha e Sarah vão contando sua perspectiva da história alternadamente. Quando Pequena Abelha é a narradora lidamos com a carga dramática do livro, apesar dela contar as coisas com alguma frieza e até mesmo com certo conformismo. Ela simplesmente conta os fatos, conforme vai lembrando-se deles, e ao termos um vislumbre de sua mentalidade, descobrimos o quanto esses fatos modificaram sua alma.
A melhor parte da narrativa de Sarah (que na verdade eu achei um pouco entediante no começo comparando com a visão da Pequena Abelha) é quando ela fala sobre o filho, Charlie. Imagine uma criança de quatro anos que não veste outra coisa a não ser uma fantasia do Batman, seja dormindo ou acordado e, mais do que isso, acha que realmente é o Batman e, portanto, se comporta como tal. Dei muita risada com as situações envolvendo o Charlie, e somente lá pelo final do livro, fui entender o quanto esse comportamento influenciou o desfecho da história.
Só tem duas críticas que posso fazer a este livro que eu tanto gostei:
1º Senti falta de conhecer melhor a visão de Andrew sobre essa história. Fiquei durante o livro inteiro esperando que algum capítulo revelasse os pensamentos dele sobre os acontecimentos, mesmo que fosse através de algum diário que ele mantivesse, mas não aconteceu, apesar da Sarah ter esclarecido muito do comportamento dele após o incidente na praia.
2º O final. Claro, apesar de saber que eu não estava lendo um conto de fadas, a gente sempre espera que a arte não imite a vida e torce para que todos vivam felizes para sempre. Na verdade o que eu queria mesmo era que o livro tivesse algumas páginas a mais após o final que o autor deu, para que eu soubesse do paradeiro dos personagens, mas tenho a impressão que caso Cleave tivesse feito isso, eu exigiria mais e mais páginas, apenas porque mergulhei tão fundo nessa história, que não queria que ela tivesse fim. Estou deprimida.
Pg. 11
(...) Aprender o Inglês da Rainha é como tirar o esmalte vermelhão das unhas dos pés na manhã seguinte a um baile. Leva um tempo enorme, sempre fica um pouco nos cantos e, quando a unha cresce, a mancha vermelha faz lembrar como a gente se divertiu naquela noite. Portanto, você pode deduzir que demorei um bocado para aprender. Por outro lado, tive tempo de sobra. Aprendi sua língua num centro de detenção de imigrantes em Essex, no sudoeste do Reino Unido. Fiquei trancada lá dois anos. Tempo era tudo o que eu tinha.
Pg. 17
Nas pernas escuras da moça havia muitas cicatrizes brancas pequeninas. E pensei: Será que essas cicatrizes estão pelo seu corpo inteiro, como as luas e estrelas no seu vestido? Achei que isso também seria bonito, e peço-lhe neste instante que faça o favor de concordar comigo que uma cicatriz nunca é feia. Isto é o que aqueles que produzem as cicatrizes querem que pensemos. Mas você e eu temos de fazer um acordo e desafiá-los. Temos de ver todas as cicatrizes como algo belo. Combinado? Este vai ser nosso segredo. Porque, acredite em mim, uma cicatriz não se forma num morto. Uma cicatriz significa: “Eu sobrevivi”.
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