Tuca 05/11/2020“Acredite que a escolha que envolve a sua felicidade, ou a sua tristeza, deve ser feita somente por você.”Nas paisagens idílicas da Sicília, em um suntuoso castelo, moravam Julia e sua irmã Emília. Desde a morte da esposa, o Marquês de Mazzini havia partido com o filho Ferdinand e a nova mulher, a perversa Maria de Vellorno, para morar em Nápoles, deixando as meninas aos cuidados de Madame de Menon, sua amorosa governanta. O retorno da família poderia ser sinônimo de felicidade, se o marquês não fosse um homem cruel e acabasse adquirindo a intenção de casar Julia com o velho duque de Luovo, enquanto a jovem estava apaixonada por Hippolitus; e se inúmeros gritos, gemidos e assombrações não tivessem se manifestado em aposentos há muito desabitados e trancados. A luta pelo amor impossível de Julia e Hippolitus, o mistério horrível que causava pavor aos moradores do castelo, e a corrida para escapar de um pátrio poder tirano são o roteiro de uma história de segredos, desencontros, aventura, paixão, e morte.
As descrições, a poesia, o romantismo, e o sobrenatural racionalizado são características marcantes dos romances de Ann Radcliffe, referência do gótico e uma das escritoras mais bem pagas de sua época. Para quem leu Jane Eyre de Charlotte Brontë, é inegável a semelhança de alguns pontos da história, não apenas pelas características do gênero, mas pela influência que Ann teve nos romances góticos que sucederam os seus. Ela foi uma precursora, e se hoje, ao ler um livro como Um Romance na Sicília, o leitor pode considerá-lo clichê ou até mesmo previsível, é porque ela foi muito imitada, e na verdade, em seu tempo, ela foi extremamente criativa e bem-sucedida, e por isso, acabou sendo referência para outros autores que a seguiram. Ela é uma das fontes, não a foz.
Com uma linguagem mais formal, que combina com a suntuosidade do gótico, o amor de Julia e Hippolitus me lembrou um pouco das obras Shakespearianas, com uma grande diferença de que o enredo de Ann tem poucos diálogos, focando bastante na narrativa, e conforme já indicado no prólogo, isso acontece muito provavelmente para parecer uma contação de história, um resumo desse passado conturbado, que nem sabemos se realmente ocorreu. Dessa característica, acredito que também tenha resultado a superficialidade de alguns personagens. O enredo é muito evidenciado nos Mazzini, mas havia figuras extremamente interessantes, que por mais que eu torcesse por um aprofundamento, elas continuavam apenas como apoio conveniente aos heróis da trama. Eu acredito que isso seja coerente com a proposta de um resumo de uma lenda do passado, mas poderia ter sido um ótimo pano para manga capaz de elevar mais a trama como um todo.
Publicado em 1790, esse foi o segundo romance da autora, e apesar de ela já ser bem conhecida, de início, Ann o publicou anonimamente. O medo do sobrenatural pode assombrar, mas essa é uma história que aponta muito mais o horror do mundo real, da opressão patriarcal e social, dos sofrimentos e desejos do jovem do século XVIII aprisionado de diversas maneiras em normas, deveres e obediência do que o temor de fantasmas, demônios e outras entidades espirituais. E assim, Um Romance na Sicília sedimenta um entrecho de libertação, como na citação destacada logo no começo. Os personagens do núcleo dos bonzinhos (sim, porque essa é uma história nitidamente maniqueísta dividida em vilões e heróis) estão cada qual aprisionados literal e metaforicamente e neles vamos encontrando vários caminhos e significados do que é ser livre.
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