A Força do Estilo de Napoleão

A Força do Estilo de Napoleão Euclides Mendonça




Resenhas - A Força do Estilo de Napoleão


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Jim do Pango 24/12/2010

Mesmo diante de César haverá sempre lugar para Cícero
A tese de que Napoleão foi um grande escritor pode causar espanto ao público em geral, porém não se trata de nenhuma novidade. Ao prefaciar a edição de 1941 de “Memórias de Santa Helena”, Roger Peyre lembrava que as homenagens havidas, 20 anos antes daquela publicação [2] da Editora Meridiano de Porto Alegre, por ocasião do primeiro centenário da morte de Napoleão, “teriam ficado incompletas se, entre todas as suas glórias, não se fizesse lugar à literatura”.

Peyre afirma com grande segurança que a literatura francesa possuiu, em um curto intervalo de tempo durante o século XIX, ao lado de outros nomes dignos de nota, quatro escritores de primeira ordem: Chateaubriand, Mme. De Staël, Joseph de Maistre e Napoleão.

Ocorre que, atualmente, para um grande número de pessoas, causa espécie qualquer afirmação sobre Napoleão associada à produção literária de qualidade. O imperador dos franceses é reconhecido, no mais das vezes, pelos seus feitos militares, conquanto, no Brasil, a visão geral que se tem do grande corso é baseada na perspectiva de seus maiores inimigos, os ingleses, os quais o preferem tratar simplesmente por Bonaparte, quando não por Bonnie, o Ogro.

A guisa de justificativa para as distorções, se é que alguma é exigida, basta lembrar que a família real portuguesa veio para no Brasil em 1808, sob a escolta dos ingleses, aterrorizados com a expansão do império francês [2]. Além disso, as chamadas “idéias francesas”, consideradas perigosas e subversivas, sempre foram proibidas por aqui. Napoleão, a seu turno, era o grande inimigo. Essa imagem ainda ocupa o, digamos, “subconsciente coletivo’ da atual sociedade brasileira.

Com efeito, o livro do professor Euclides Pereira de Mendonça, que, em sua segunda edição, trás na capa a imagem do general a cavalo pode despertar o interesse dos amantes das façanhas militares, que, estimo, terão grande surpresa ao se depararem com o trabalho eminentemente acadêmico apresentado pelo autor que desvela um Napoleão brilhante, mas um brilhante escritor.

O termo “estilo” empregado no título da obra, naturalmente, se refere à maneira de escrever; ao conjunto dos recursos expressivos (fônicos, sintáticos, figuras de linguagem, etc) que caracterizaram a linguagem Napoleão. Assim, bem poderia o autor ter chamado sua obra de “A Força da Pena de Napoleão”, porém preferiu utilizar-se da terminologia, digamos, tecnicamente mais adequada.

Segundo se lê no prefácio, assinado por Jarbas Passarinho, a obra foi originalmente tese apresentada em concurso para a cadeira de Francês do Colégio Militar de Belo Horizonte, o que explica o rigor acadêmico que pode ser observado ao longo das pouco menos de 150 páginas que compõem o estudo.

Surpreendi, fixado à página 85, um pequeno pedaço de papel com a mesma cor e mesma textura das páginas do livro e, passada a curiosidade inicial, não sem grande satisfação, vi que se tratava de uma errata. Tomei aquela errata como uma preocupação do autor com seus leitores, uma forma elegante de manifestar certo perfeccionismo, que, além de tudo, acresce credibilidade ao estudo, que foi revisado por ele próprio.

A obra é bem estruturada. Demonstra que os anos de estudo na França do autor não foram em vão. A justificar as assertivas no sentido de Napoleão teria sido tão grande escritor quanto foi general, caso houvesse optado por aquela carreira em detrimento dessa, o autor trás à colação muitos textos de obras raras e de autoridades incontestáveis no assunto. Apreciei imenso notar que as citações eram transcritas no idioma original, o francês, seguidas de uma versão no idioma de Camões.

A escolha por transcrever os excertos em francês e depois traduzi-los, a meu sentir, foi um dos pontos altos do livro. Isso, pois, elimina os problemas de tradução, tão comuns em textos estrangeiros publicados no Brasil, bem como, é claro, oferece uma oportunidade de comparação entre as frases e estruturas gramaticais do português e da língua de Voltaire.

É o que pode ser visto no tratamento dispensado à célebre proclamação de Napoleão à sua Guarda, após abdicar o trono da França em 1814 e antes de partir para o seu primeiro exílio na ilha de Elba, conhecida como “Adieux a La Garde” [3], que aqui transcrevo exatamente como feito no livro:

“Soldats de ma vielle Garde, je vous fais me adieux. Depuis vingt ans, je vous ai trouvés constamment sur le chemin de l’honneur et de la gloire. Dans ces derniers temps, comme dans ceux de notre prospérité, vous n’avez cesse d’être dês modèles de bravoure et de fidelité. Avec des hommes tels que vous, votre cause n’etait pás perdue. Mais la guerre était interminable; c’eût été la guerre civile, et la France n’en serait devenue que plus malheureuse. J’ai donc sacrifié tous nos intérêts à ceux de la patrie; je pars. Vous, me amis, continuez de servir la France. Son bonheur était mon unique pensée; Il sera toujours l’objet de mes voeux! Ne plaignez pas mon sort; si j’ai consenti à me survivre, c’est pour server encore à votre gloire; je veux écrire les grandes choses que nous avons faites ensemble! Aideu, mes enfants. Je voudrais vous presser tous sur mon coeur; que j’embrasse au moins votre drapeau!
Adieu encore une fois mes vieux compagnons! Que ce dernier baiser passe dans vos coeurs!” [4]

“Soldados da minha Velha Guarda, venho apresentar-vos minhas despedidas. Durante vinte anos a fio, muitas e muitas vezes, deparei-me convosco, palmilhando o caminho da honra e da glória. Nos dias que correm, como também, nos dias de nossos sucessos, nunca deixastes de ser modelos de bravura e de lealdade. Com homens de vossa estirpe, nossa causa não estaria perdida. Mas a guerra parecia interminável. Corríamos o risco iminente de um conflito civil. Isso ocorrendo, a França tornar-se-ia ainda mais infeliz. Eis por que sacrifiquei todos os meus interesses em prol dos interesses da pátria e me afasto. Quanto a vós, meus amigos, continuai servindo à França. Para ela estiveram voltados todos os meus pensamentos. Para ele convergirão sempre meus melhores anelos. Não deploreis meu infortúnio. Se aceito sobreviver-me é, ainda, para servir vossa glória. Pretendo escrever sobre os grandes feitos que empreendemos juntos. Adeus, filhos meus. Gostaria de estreitar-vos a todos junto ao meu coração. Que eu beije, pelo menos, a vossa bandeira!
Adeus, mais uma vez, meus velhos camaradas! Que este último ósculo perpasse vossos corações!” [5]

Em seu livro, Mendonça trata de um personagem histórico que sempre foi um leitor voraz, sobretudo dos clássicos. O mesmo personagem que, na juventude, produziu muitos e variados textos entre romances, novelas, ensaios filosóficos, históricos, militares e políticos. O exato personagem que, em sua “fase gloriosa”, enquanto foi o Senhor da Europa, se tornou um escritor que não escrevia seus textos, mas, isto sim, os ditava. Continuou ditando ao dar à luz a sua obra mais famosa, Memórias de Santa Helena, que foi anotada pelo seu companheiro no exílio o Conde de Las Cases. Ocorre, simplesmente, que esse personagem é Napoleão Bonaparte, “Le plus puissant souflle de vie qui jamais anima l’argile humaine” [6], o que torna a leitura absolutamente fascinante.

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[1] BONAPARTE, Napoleão. Memórias de Santa Helena. Tradução de Olga de Garcia. Introdução e notas de Roger Peyre. Edições Meridiano: Porto Alegre, 1941.

[2] O medo de Napoleão pode ter impulsionado a Corte portuguesa para o Brasil em 1808, porém, anos mais tarde, a estratégia se revelou a mais acertada possível, por certo que os soberanos da Casa de Bragança permaneceram os únicos monarcas a manterem a coroa, quando a Europa Continental caiu nas mãos de Napoleão. Ao final, a mudança da capital para o Novo Mundo ainda engendrou uma nova nação, o Brasil, que, a exemplo da antiga metrópole, passou a ser governado por um monarca Bragança.

[3] A despedida de Napoleão à sua velha guarda é um dos momentos mais marcantes e emocionantes da saga napoleônica. Foi objeto de uma famosa pintura romântica de Antoine Alphonse Montfort, chamada “Adieux de Napoléon à la Garde impériale dans la cour du Cheval-Blanc du château de Fontainebleau” (que pode ser vista no seguinte link: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Montfort_-_Adieux_de_Napoleon_a_la_Garde_imperiale.jpg). Além disso, ganhou uma versão especial interpretada pelo ator Rod Steiger no filme Waterloo, de 1970 (que pode ser assistida no link que segue: http://www.youtube.com/watch?v=FfIQF-mY208).

[4] MENDONÇA acrescenta nota de rodapé que indica que a proclamação original constava em: TOMICHE, N. Napoléon écrivain. Paris:Librairie Armand Colin, 1952, p. 151.

[5] MENDONÇA, Euclides. A Força do Estilo de Napoleão. 2. ed. Brasília: Tesaurus, 2008, p. 116-117.

[6] “O mais potente sopro de vida que, um dia, animou a argila humana”. Frase de Chateaubriand se referindo, naturalmente, a Napoleão que o Euclides Mendonça escolheu como epígrafe de seu livro.
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