Leila de Carvalho e Gonçalves 10/12/2021
A Existência Do Mal
Publicado em 1992, Cães Negros é o quinto romance de Ian McEwan. Provocativo, ele pode ser compreendido com uma meditação sobre a natureza do bem e do mal no formato de um livro de memórias, narrado por um órfão, Jeremy, atraído pelos pais de outras pessoas, em especial, pelos pais de Jenny, sua esposa.
Eles são June e Bernard Tremaine. Quando os dois se conheceram, eram simpatizantes do Comunismo, entretanto os temperamentos e as experiências de cada um, levaram-nos a caminhos opostos, causando a separação por motivos ideológicos e espirituais, contudo tal decisão não foi capaz de diminuir o amor que sempre os uniu.
O evento catalisador ocorreu durante a lua de mel do casal, em 1946, tendo como cenário o bucólico interior da França. Nesta época, June já se sentia desencantada com o rumo do Partido Comunista Inglês no Pós-Guerra e seu encontro com dois cães, negros e de grande porte, foi entendida por ela tal qual um embate com ?encarnações de erupções selvagens e irracionais que se refazem através da história?, sendo o nazismo uma dessas manifestações. Enfim, um insight que lhe proporcionou uma perspectiva redentora, capaz de dar um novo sentido para sua vida.
Resumidamente, os animais são uma metáfora para a existência do mal e este episódio é descrito minuciosamente no último capítulo, quando leitor provavelmente já se decidiu, ou se confundiu entre o misticismo de June e a racionalidade de Bernard. Aliás, que me recorde só em ?O Cão dos Baskervilles?, de Sherlock Holmes, a malignidade canina, apresentada como uma ameaça sobrenatural, foi explorada de modo tão perspicaz.
A questão fundamental é se o romance, sobretudo, esta cena são suficientes para tirar o leitor de sua zona de conforta e creio que McEwan ficou devendo em concisas 172 páginas. Por sinal, 25 anos depois de seu lançamento, a queda de braço de June e Bernard perdeu o viço diante de questões atuais. Na verdade, o confronto entre o ateísmo comunista e a crença religiosa não está no topo das discussões após o fim da União Soviética, a ascensão da ultradireita e do neoliberalismo, portanto o livro envelheceu mal em três décadas.
Todavia, um romance datado de McEwan é melhor do que muita literatura propangadeada como fora de série. O escritor tem o completo domínio narrativo, sabe apresentar protagonistas tridimensionais e, se para ele o amor nem sempre é uma virtude, também não implica num luminoso final feliz. Enfim, recomendo especialmente aos admiradores de McEwan que poderão comparar Cães Negros com outros livros de sua autoria.