Ladyce 23/01/2022
Cães negros de Ian McEwan, [tradução de Daniel Pellizzari] é uma comovente reflexão sobre a Europa, os europeus e as escolhas que fizeram ao final da Segunda Guerra Mundial. Não sou especialista na obra de McEwan, mas é um escritor contemporâneo que me atrai. Depois de ler este quinto livro de sua autoria, reflito que nunca me decepcionou. Como ele, sou da geração baby boom, formada no pós-guerra, marcada pela lembrança que nossos pais ou familiares tiveram de batalhas, de trabalho no serviço de censura, no setor da comunicação, na resistência ao Eixo, na divisão da Europa em dois mundos. Se não somos órfãos dessa guerra, certamente tivemos familiares, amigos da família, namorados de tias, de primas que morreram em navios afundados, que lutaram na Europa ou preservaram a costa brasileira dos submarinos alemães. Nossas mães, tias, primas trabalharam voluntárias, no apoio silencioso às tropas brasileiras; cozeram para a Cruz Vermelha; aviaram remédios para os feridos; deram apoio à transferência de crianças em perigo para o nosso país. É natural, portanto, que esta guerra, cujas histórias tristes, alegres, engraçadas ou de aventuras tenha feito parte da nossa infância, rodeando as mesas dos almoços ajantarados, parte da constelação de valores que nos foi imbuída. É a herança cultural da geração. E vez, por outra, Ian McEwan, fazendo jus à sua geração, se dedica a algum aspecto do pós-guerra, com brilhante sensibilidade.
Neste livro Jeremy, o narrador da trama, angaria dados para a biografia de sua sogra, entrevistando-a poucos meses antes dela morrer, tenta descobrir a circunstância que levou os sogros, Bernard e June Tremaine, profundamente apaixonados um pelo outro desde 1946, quando se conheceram, a se separarem sem tentarem reconciliação, anos depois, após mesmo o nascimento de três filhos. Separaram-se mas continuaram fiéis um ao outro. Tendo participado da guerra e pertencido ao Partido Comunista, ambos eventualmente deixam o partido para trás. Ela se refugia e encontra paz na região Languedoc da França, onde mora com os filhos, enquanto Bernard toma o caminho do engajamento político na Inglaterra. O enredo estreito e tênue é tratado com maestria na narrativa, de tal modo que passamos do final da Segunda Guerra à Queda do Muro de Berlim em 1989; dos campos de concentração alemães à dualidade de sentimentos dos franceses ao perigo nazista ainda rondando o país.
É sempre surpreendente ver como Ian McEwan mantém o interesse do leitor através de leve mas intrigante suspense que nos faz colar os olhos na prosa deliciosamente precisa com que nos presenteia. Ansiosos por descobrir o que está escondido atrás da trama, ´progredimos pela narrativa meditativa que convida à reflexão. Esta é sua característica. Em Cães negros, McEwan recheia o relato com eventos importantes do final do século passado. Relembra aos leitores e todos de sua geração, a importância do que testemunharam: a Queda do Muro de Berlim, em 1989 ou a política na Polônia dos anos 80, com o partido de Lech Wałęsa. Acontecimentos históricos, tornados emblemáticos do final do século, ganham detalhes de sons, de agitação, de movimento, excitação, perigo iminente. Consegue-se rapidamente imaginar e trazer de volta à nossa imaginação memórias das notícias da época, da importância desses eventos em nossas vidas. Lembro-me, por exemplo, de permanecer atenta à CNN (morava nos EUA) com os olhos imantados à tela, vendo o muro ser removido pedaço a pedaço pelas mãos da população. Este muro que havia feito parte de dezenas de manchetes de jornal, no mundo inteiro, assunto perene na década de 60, quando vez por outra alguém furava a barreira, fugindo para o ocidente; ou era preso ou ferido à bala por tentar sair da RDA. Magnificas descrições desses eventos, mesmo que sucintas, enriquecem nossa experiência.
A proposta de pensarmos nas escolhas às mãos dos europeus depois da guerra é brilhante. Por vezes, nos surpreendemos com a política europeia. Como poderia um movimento neo-nazista ainda sobreviver na Europa? Eles não aprenderam nada? Como eleger alguém de extrema direita ou de extrema esquerda? Oitenta anos depois, vemos essas possibilidades reaparecerem. Porque o fantasma do nazismo não foi erradicado. E europeus, muitos deles repletos da dualidade de sentimentos nem sempre se mostram decididos a erradicar o mal.
June e Bernard Tremaine são emblemáticos da dicotomia que afeta o europeu. Inicialmente engajados no Partido Comunista, eventualmente se desligam à procura, cada qual à sua maneira, de achar uma maneira de viver que faça sentido. June logo encontra sua própria natureza contemplativa e acomoda-se a esse novo mundo. Mas Bernard ainda que tenha dado as costas ao marxismo, em sua visita a Berlim durante a Queda do Muro, parece nostálgico, forçado que foi a admitir a falência total do sistema que por tanto tempo defendeu.
Este é um belíssimo livro que nos obriga a considerar o impacto da Segunda Guerra Mundial nas vidas comuns. Uma reflexão trazida de maneira séria e sedutora. Não é a toa que foi um dos finalistas do Booker Prize em 1992.