Coisas de Mineira 27/02/2023
A ÚLTIMA TRAGEDIA DO ESCRITOR ABDULAI SILA
A Última Tragédia, de Abdulai Sila, com certeza, vai marcar sua vida como leitor das literaturas africanas de língua portuguesa.
Colonização, violência sexual, racismo, homicídio são temas presentes na narrativa que vai do amor à exploração. Com certeza este é o tipo de leitura que vai fazer você parar várias vezes para respirar um pouco e pensar em como o ser humano pôde (e pode) ser tão cruel com outro.
“Senhora, quer criado? ”
RESENHA DO LIVRO A ÚLTIMA TRAGÉDIA
Publicado em 1995 com o selo da Ku Si Mon Editora, divido em três histórias que se interligam durante a narrativa, A Última Tragédia é um romance que apresenta questões sobre a colonização em Guiné-Bissau.
Na primeira parte, nos deparamos com a história de Ndani, uma menina de 13 anos, portadora de uma maldição, segundo um feiticeiro de sua aldeia – Biombo – que sempre trará infelicidade, causando o mau ao seu redor.
Após tantos sofrimentos em sua aldeia, a personagem recebeu dicas de uma madrasta que explicou como é a vida dos brancos e a orienta o que Ndani tem que fazer capital Guineense. Nisso, a jovem se muda para Bissau em busca do sonho de trabalhar para uma família branca, observar e aprender como eles falam, se comportam e vivem. Além de aprender a ser “civilizada” de acordo com os costumes de pessoas brancas.
NDANI E A CAPITAL
A personagem muda-se para a capital e sai de casa em casa falando uma única frase “senhora, quer criado? ” E, nisso, após sofrer várias humilhações, passar fome, ela finalmente encontra a casa da Dona Linda, uma mulher branca, religiosa, casada e influente, que a explora em sua residência. Por ser cristã e achar que pretos não serão salvos, Dona Linda decide catequisar os pretos ao seu redor, como se fosse uma missão divina. No qual, Deus a escolheu para isso.
Ndani, ou melhor, Maria Daniela, nome que é lhe dado por sua patroa, não só aprende o que foi em busca, como também é catequizada por sua patroa e violada pelo marido de sua chefe. Sendo essa questão, então, o ponto crucial da tragédia que segue a personagem na primeira parte.
“Qual devia ser, naquelas circunstâncias tão dramáticas, a decisão certa a tomar? Qual devia ser, naquele momento concreto, a atitude mais correcta de uma mulher cuja tarefa fundamental era salvar almas perdidas e levá-las ao rumo certo? ”
UM CASAMENTO FORÇADO. O RÉGULO E NDANI
Nessa segunda parte do livro, Ndani encontra-se em um casamento forçado e como a sexta mulher de um régulo, que é o líder de uma aldeia no interior do país, Quinhamel. Nesse momento, a personagem depara-se em um momento tão doloroso, logo que ela tem relações indesejadas com o atual marido. No entanto, nesse desenrolar da narrativa, o foco é destinado mais ao Régulo, uma vingança e um testamento que ele quer deixar para o futuro Régulo, com orientações do que ele precisa ser e fazer.
Como dito, o Régulo é o líder, e, por isso, ele tem alguns “privilégios” em relação as pessoas da aldeia. No entanto, em um determinado momento da narrativa, ele é indagado pelo chefe (um branco de poder) sobre quem paga os impostos e afirma que todos que ali vivem fazem o devido pagamento, no mesmo momento é indagado se ele paga, porém, afirma que não, porque é o Régulo e nunca aconteceu dos anteriores terem que pagar.
Visto que pagando os impostos, ele seria um indígena como outro qualquer, e um Régulo, é uma pessoa para ser respeitada, dado que se começasse a pagar os impostos, as pessoas começariam a buscar um motivo para isso, logo que inventariam várias coisas, ele vai atrás de respostas.
O CONSELHO
A notícia de que o Régulo teria que pagar o deixa tão enfurecido ao ponto de ficar dois dias em sua cama até recorrer aos conselheiros para saber o que pode ser feito. Após a conversa, resolvem ir até a casa do Chefe para falar sobre a cobrança de impostos. Após o diálogo, o Régulo fica enfurecido e agora o seu foco é tramar uma vingança, mas uma algo que seja certeiro para não se prejudicar.
E o Régulo parte para saber sobre a vida do Chefe, onde ele mora, como é sua casa e analisa todos os seus passos em busca de uma vingança perfeita, mesmo fosse em forma de uma brincadeira, mas aí que ele encontra um problema: não é tão fácil se vingar de um branco, uma vez que os brancos sempre estão a pensar. Pensam em tudo.
Após isso, ele entra em uma questão: por que pretos não pensam no porquê das coisas? Diferente dos brancos, pretos nunca pensam e só aceitam que os brancos são superiores. Logo que se você falar sério com um branco, ele morre de medo.
RÉGULO E O PROFESSOR
No momento do testamento, uma figura muito importante da narrativa aparece, o professor. Ele, que se muda para dar aula na escola que a Dona Linda, a boa mulher, conseguiu que fosse construída com o seu projeto de catequizar as pessoas e ensiná-las a serem “civilizadas”.
O Régulo, em busca de sua vingança, recorre ao professor para redigir o testamento com as informações necessárias para ser um bom régulo, para saber o que ele precisa entender nesse mundo de brancos com poder.
Essa segunda parte é um misto de acontecimentos e o momento em que o leitor percebe que as três narrativas se encontram e estão interligadas. Ndani, o Régulo e o professor.
“Quando há um problema com um branco e ainda por cima um branco que não que não é qualquer, não se pode estar descansado. Deve-se estar desconfiado, mas nunca descansado. ” Um momento feliz. Um amor verdadeiro. O professor.
“A esperança tinha nascido muito antes de Obem. Quem não a conhecia podia até duvidar. Duvidar ou perguntar: Onde? Quando? Como? Ela não tinha dúvidas. A esperança estava lá, sentia-a, vivia dela. “
A ÚLTIMA TRAGEDIA É DIVIDIDO EM VARIAS PARTE
Nessa terceira parte da narrativa, Ndani encontra-se em apaixonada pelo professor e vivendo um momento feliz com sua família, tanto que em determinado momento ela até chega a questionar se de fato tinha um espírito mau em seu corpo, como disse o Djambakus – feiticeiro – anos atrás, fazendo com ela sofresse.
Com sua família formada e vivendo um dos momentos mais tranquilos de sua vida com o professor, Ndani vive um verdadeiro amor com o professor que gentil, carinhoso, amigo, parceiro. Nesse momento, a narrativa gira em torno do professor e da própria Ndani, ou seja, não há um foco maior, como na parte do régulo.
Todos em Catió gostam do professor. Ele é bom em tudo que faz e muito respeitado por todos ao seu redor. Ninguém tem o que reclamar dele. Um verdadeiro homem de respeito, que foi criado pelos padres e carrega consigo os princípios e valores que fora ensinado desde sua infância e levou para vida, sendo um hoje um homem de digno e honroso.
Na região em que vivia com sua amada Ndani, o professor costumava jogar futebol. As esquipes eram formadas por solteiros contra casados. Apesar do professor ser casado, juntou-se com os solteiros (tenta adivinhar o porquê, caro leitor rs). Ganhava todas as vezes que jogava e isso chamou muita atenção, revolta no time oposto e muita admiração, não só pelos torcedores, mas por sua esposa, Ndani.
Apesar de ser o melhor jogador, decidiu não ir jogar mais. No entanto, por ser tão bom jogador, o professor causava um desfoque muito grande quando não ia. Pois, ele era um sucesso em campo, fazendo o time oposto sempre perder a competição.
O PROFESSOR
Quando decidiu não ir mais, muitos foram a sua casa insistir para voltar, e o mesmo negando, até que sua mulher o convence a ir. Durante a partida, o administrador o agride simplesmente porque o Professor deu um passe de boa muito bonito.
Dias depois, o Administrador é encontrado em uma situação grave em sua residência, e, como não era de se esperar, todas as acusações caem sobre o Professor, simplesmente porque o administrador bateu no professor em campo. Nesse momento, Ndani se vê novamente abalada, sem paz, sofrendo pelo seu marido, destruído com as angústias, perseguições e injustiças.
Esse terceiro momento o leitor se depara novamente com a dor e a angústia da personagem e novamente volta a acreditar que ela realmente tem um espírito mau em seu corpo. E, por isso, tudo isso está acontecendo, além da culpa de ter convencido o marido a ir jogar futebol naquele dia.
A ÚLTIMA TRAGÉDIA É UM RETORNO AO PERÍODO CRUCIAL QUE FOI A COLONIZAÇÃO
“Ele fez cair a cabeça no peito dele e começou a chorar. Abraçou-o com mais força. Ele passou-lhe a mão pela nuca e, acariciando-a, deixou-a chorar. ”
Devo admitir que o Abdulai Sila, me deixou com o coração apertado durante toda a leitura de A Última Tragédia. Sem contar que sua escrita é tão fluída e envolvente que o leitor folheia várias páginas sem perceber. Você começa a leitura e só quer parar quando terminar.
A escrita do Abdulai Sila é bastante fluída, assim como a do Ondjack, autor de Bom dia, Camaradas, e do conto A confissão do acendedor de candeeiros. O autor também apresenta questões como colonização, independência e que são pontos presentes nas obras de Sila.
Ganhei o livro de um professor, e, com certeza, foi uma das melhores leituras que eu tive na faculdade e na vida. Com certeza é uma leitura surpreendente.
Um ponto muito legal sobre o livro é que no fim do livro tem um glossário que você pode consultar palavras que não são da língua portuguesa, uma vez que o crioulo se faz presente na narrativa do livro. Além do mais, vale mencionar que logo na capa, percebe-se uma alusão uma mulher branca e uma mulher preta.
SOBRE ABDULAI SILA
O autor Abdulai Sila, nasceu em Catió, em Guiné-Bissau, em abril de 1958, o autor é engenheiro eletrotécnico. Além de ser empresário e ter uma empresa de serviços de internet com juntamente do seu irmão. Símbolo da literatura guinennense, Sila uma figura importante para o seu país e símbolo para a sua literatura. Sila também escreveu o livro Eterna Paixão de 1994 e Mistida de 1997.
Por: Dalyson Oliveira
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