Wanderley 17/01/2023
“As Cabeças Trocadas” e o nosso amor por ilusões
Em "As Cabeças Trocadas", adaptação de um antigo conto Hindu, escrita por Thomas Mann em 1940, percebemos como aquilo o que pode nos parecer óbvio e até tautológico, se bem observado, ganha inusitada complexidade, capaz de superar até mesmo as inacreditáveis reviravoltas de uma lenda indiana.
Seu corpo é você? Você é seu corpo? É possível ser sem ter? Ou ter o que não se é? Querer atributos de outra pessoa é renegar, pelo menos em parte, os seus próprios atributos? São dúvidas que permeiam a “nouvelle”, em que dois amigos disputam o amor de uma linda jovem, dividida entre as qualidades de um e do outro. Situação que os dois até compreendem, como Mann explica:
“A amizade dos dois jovens baseava-se nas diferenças de seus sentimentos relativos ao eu e ao meu. Os de um ansiavam pelos do outro, pois a encarnação cria a individualização; a individualização causa diversidade; a diversidade provoca a comparação; da comparação nasce a admiração; e esta, finalmente, produz de troca e união.”
A história se desenvolve em meio a mitos religiosos e alguns conceitos filosóficos, analisados com refinada ironia. Mas o ponto central do texto está na reflexão sobre a identidade e o apego às aparências. Em algumas passagens, o autor, figura onisciente da narrativa, fala sobre os impasses das personagens:
“Não é por acaso que a Volúpia, sagaz esposa do Deus do Amor, foi apelidada de “Dotada de Maya”, pois é ela quem torna encantadora e desejável toda aparência, ou melhor, faz com que assim apareça. Ora, a palavra “aparência” contém em si o elemento sensorial do mero “parecer”, e este, por sua vez, anda ligado à ideia de ilusão e formosura. (…) [O homem] em vez de procurar o desencantamento, anseia por embriaguez e cobiça, temendo antes de mais nada chegar a ser desiludido, isto é, desprovido de ilusões”.
Esse é o Thomas Mann de “A Montanha Mágica” acenando em meio ao relato pitoresco de uma lenda oriental. Jamais me ocorrera que o medo da desilusão seja o reflexo espelhado do amor que temos pelas ilusões. Convenientemente, confundimos desilusão com decepção com os outros, quando, na verdade, é desapontamento com nós mesmos, que nos iludimos sobre a natureza de nossos próprios sentimentos.
Em outra passagem, ao discorrer sobre a relação entre a jovem e seus pretendentes, presos a uma fantástica e mística armadilha, o autor dispara, com a elegância de sempre:
“Há uma beleza espiritual e outra que fala aos sentidos. Há, contudo, certas pessoas que querem restringir o belo exclusivamente ao campo dos sentidos e dele apartar completamente o espiritual, com o resultado de uma cisão sistemática entre o espírito e a beleza. (…) Mas dessa doutrina da felicidade conclui-se logo que entre o belo e o espírito não há a mesma oposição que separa o belo do feio (…). O espiritual não é sinônimo do feio ou, pelo menos, não o é necessariamente, pois reveste-se de beleza, ao reconhecer e amar o belo. Esse sentimento manifesta-se sob a forma de beleza espiritual e não é, no fundo, inteiramente absurdo nem desprovido de esperança, porque, pela lei da atração dos opostos, o belo também anseia pelo espiritual. Nosso mundo não está constituído de tal maneira que ao espírito caiba amar coisas espirituais e à beleza apenas o belo.”
Enxergar com tanta precisão, a partir dos desencontros da lenda indiana, a sôfrega tentativa humana, talvez ilusória (olha a Deusa Maya), de conciliar desejo e paz interior, é puro Thomas Mann na veia.
No posfácio, o leitor é informado de que o autor gostava de intercalar suas obras mais robustas, e volumosas, com outras mais leves e rápidas, como “As Cabeças Trocadas”, para descansar a mente. Penso que essas são ideais como introdução aos que desejam entrar nesse universo, uma bela amostra do potencial espiritual (inteligência) e sensorial (estilo), que o autor conseguiu unir em sua obra literária.
site: https://wanfil.medium.com/livro-as-cabe%C3%A7as-trocadas-de-thomas-mann-e-o-nosso-amor-pelas-ilus%C3%B5es-2e396279f489