spoiler visualizarSvartzorn 22/11/2011
Para efeitos da resenha como um todo, falarei dos contos um a um, separadamente, para depois fazer um apanhado geral ao fim.
-O capote: conta a história de um indivíduo que parece predestinado a ser medíocre - coisa que se reflete até no nome que o próprio personagem, quando neném, parece rejeitar e fazer troça. Não se diz muito de sua vida até o momento relevante para a narrativa. Vale apenas ressaltar que é um funcionário de baixo calão que por todos é troçado e que possui um trabalho mecânico e medíocre de copiar documentos. É raro, mas chega a inspirar a pena de alguns. Quando algum superior se compadece de sua situação e lhe dá trabalho diverso - ainda simples - a natureza passiva e insípida do protagonista encontra obstáculos e pede para que lhe retornem as velhas cópias, com as quais se delicia. Parece ser, por sinal, este o único prazer do personagem. Trata-se de conformidade com sua situação patética.
Assim vive até que as necessidades do tempo lhe pedem que adquira determinado bem. Após muito esforço e sacrifício, consegue o dito bem – que nomeia a história. Passa a ser elogiado pelos que zombavam dele, passa a se deliciar com a pequena conquista - a alma do personagem consegue, aqui, tomar um pequeno fôlego, sentir um pouco o gosto da dignidade a que todos almejamos. Mas eis que lhe roubam o bem. O desespero toma conta de si e, desarticulado, não consegue que se façam as diligências para recuperá-lo. Mais que isso, é tratado de forma desumana por um dito "figurão" que, na ocasião, quer impressionar e é esmagado pelo peso, pela grandeza dos títulos e da posição sócio-política que este detém. Acaba morrendo, e este é o ponto crucial. Não parece aceitável que um ser tão medíocre, que se acostumou à mediocridade e passou por todo tipo de privações e humilhações sem rebelar-se, tenha a única fonte de dignidade tomada de forma tão inescrupulosa. Parece-me aqui que o espírito humano se irresigna contra tal fato, de forma que o protagonista retorna como fantasma buscando vendetta. E até aqui há a feição da mediocridade - não se trata de um fantasma que cause lá grandes estragos, ou que seja temido além do fato de ser uma alma penada - apenas passa a subtrair de outras pessoas o capote que tiraram de si em vida. É bem verdade que vem entornado de uma aura de bravura certamente causada pelo inconformismo supra-citado.
O conto termina quando o fantasma se acerca do figurão e o pune pela soberba praticada - e isso se dá ainda que o autor nos conte como o dito figurão se havia compadecido da morte do protagonista. Creio que possa ser lida aqui uma pequena lição de moral: uma pessoa sempre será punida por suas torpezas, não interessando suas virtudes.
A prosa se desenvolve com fluidez e um toque de humor que julguei característico das obras selecionadas no livro.
-O diário de um louco: trechos do diário de um homem que parece projetar seus desejos e frustrações em tudo quanto é coisa, sem seqüenciamento lógico. É assim que ele leria a correspondência entre duas cadelas - e estas ainda se dão ao luxo de zombar dele!
É assim que se declararia, em face de uma crise que se deu à época em Espanha, o rei deste país e manteria em segredo tal condição. Parece a exploração de outra faceta dos desejos recalcados de funcionários de baixo calão do regime czarista. No caso das cadelas, a paixão que tem pela filha de seu superior. No caso da realeza, o desejo de ter autoridade e nobreza - de ser realmente alguém. Pinta-se tanto com as cores de tais virtudes que em dado momento, ainda em sua loucura, oculta, ladino, de outro funcionário que apetece-lhe a paciência, o pensamento de que é rei. Não usa as qualidades que se atribui para esmagar o outro justamente por atribuir-se tais qualidades.
-O nariz: o nariz conta a história de um funcionário de nível médio-alto que cobiça cargo de maior envergadura na administração czarista. O retrato desse protagonista é completado com a característica de ser demasiado galanteador e de viver a pavonear-se em frente às suas "vítimas" do seu título e aparência. Aparência essa, claro, que é requerida por conta de sua função social.
O destino prega-lhe uma peça inusitada e o dito protagonista amanhece um dia sem nariz. Fica sabendo que o nariz está perambulando por aí, passando-se por funcionário de maior categoria que a do próprio dono! Literalmente o nariz corresponde às "aspirações" de seu portador, que sai desesperado atrás do mesmo. E parecem ser tais aspirações, coisa do mundo da fantasia, que ganham vida própria e passam a despojar seu criador, ainda preso na realidade. A coisa toda é posta com o mesmo matiz humorístico de que falei brevemente acima.
O fim do conto, em minha opinião, contém uma pequena e velada crítica ao utilitarismo.
-Noite de natal: conta, em tom de história popular, a história do ferreiro Vakula e sua superação sobre o diabo que busca arruinar-lhe. Sendo véspera de natal, o diabo possui apenas uma última noite para causar mal a seus desafetos e, além de tentar roubar a lua para desnortear várias pessoas, busca vingar-se especificamente do ferreiro, que também pintava imagens que desagradavam-lhe.
Aqui vale notar duas coisas: a paixão de Vakula por Osana, que o leva à adversidade de querer vender a alma ao diabo ou a afogar-se, e o triunfo de Vakula sobre o diabo e a dominação deste para alcançar seus desígnios. O posfácio dá a entender que o ferreiro precisa primeiro entrar em desespero, distanciar-se do lar, do amor, para então ser posto a teste contra o mal. É a construção de um ideal de força, de altivez.
A segunda coisa que vale notar é como se engazopam os homens da aldeia, o diabo incluído, apaixonados por Solokha. São postos em situação cômica tendo de enfiar-se, uns por cima dos outros, dentro de sacos. Acabam ali presos, preferindo o claustro momentâneo ao escárnio da aldeia. A linha cômica da história desenvolve-se entre tais fatos e a saga do ferreiro - sua história é de bravura, de valor. Finalmente, retomo o fato de que é tudo abordado em tom folclórico-popular com uma linha de humor característica, coisa que o posfácio ressalta também.
-Yiv: Apesar de o autor falar que a história que se dispõe a contar em "Yiv" faz parte do folclore ucraniano, penso eu - com a devida modéstia - que o texto aqui possui uma estrutura muito mais rígida que os anteriores. A relação com o fantástico é bem mais forte também, terminando, inclusive, com o triunfo do mal - coisa que o posfácio coloca como um tom ameaçador que o autor escolheu para intimidar [à falta de palavra mais adequada] os céticos em relação às crenças populares e o fantástico.
As partes em que o filósofo Khomá Brut precisa executar exorcismos são repletas de uma atmosfera envolvente e soturna que já vi em Poe. Me senti como num thriller e são partes que fluem melhor em relação ao resto do texto.
Aqui é importante apontar que o protagonista, que se dedica, de certo modo, à vida espiritual, não é um asceta ou uma pessoa que bem resiste às tentações do profano, mas uma pessoa que é indigente de tais qualidades. Parece ser justamente a falta de apanágios inerentes à vida espiritual que faz com que o mal triunfe ao final do conto. Como diz o próprio protagonista durante o conto e como dizem seus companheiros em sua memória: basta não ter medo, ou seja, basta manter a fé forte para derrotar os espíritos ruins. Mas o caráter do protagonista não permite isso e, não podendo munir-se da força de sua fé, acaba ele engolido pelo demônio que buscava exorcizar. É um apontamentos às necessidades da vida ascética e uma quebra do ideal daqueles que se dedicam a ela.
De modo geral, é uma leitura proveitosa. O comicismo é sempre presente, o contato com o folclore é satisfatório. Some-se isso ao fundo "moralista" e tem-se em mãos um conjunto de obras sobre o qual vale a pena recaírem algumas reflexões.
Não vou me ater aqui a questões formais e falar do desenvolvimento da prosa por carência de conhecimentos. Limito-me à intuição e a uma visão pessoal do conjunto em questão. Recomendo a leitura.