Isabel 09/03/2013Você já viu uma Matrioshka? São umas bonequinhas russas, de diferentes tamanhos, que se encaixam uma nas outras. A externa é sempre a maior, e conforme vamos retirando as peças, obtemos uma bonequinha igual, porém menor, até chegarmos a última, a única que não é oca.
Não sei se dá para entender o que quero dizer com a explicação acima, mas talvez dê agora: foi assim que me senti lendo o livro Cloud Atlas (cuja adaptação cinematográfica no Brasil foi traduzida como A viagem). São seis histórias, entrelaçando das maneiras mais loucas porém lógicas possíveis, dando sensações inexplicáveis de Deja vu – não no próprio livro, mas nas nossas próprias vidas.
Começamos com Adam Ewing, um advogado americano do século 19 que se vê alienado da família e amigos a trabalho nas ilhas do Pacífico. Depois de cumprir o seu dever, Adam tem como companheiros de viagem um excêntrico médico, um parasita no cérebro e um escravo fugido – que, a sua maneira, lhe ensinarão sobre solidariedade, confiança e amizade. Tive que respirar fundo e considerar a época em que ele vive algumas vezes: Adam, como é de se esperar, é extremamente racista, contando o massacre dos nativos das ilhas que visita em tom jocoso.
Depois temos Robert Frobisher, um talentoso jovem músico que é expulso de casa e deserdado por seu pai rico graças a seus hábitos socialmente condenáveis. Se isso já seria complicadíssimo hoje em dia, imaginem no Reino Unido de 1936 – depois de uma confortável vida como filho de um clérigo, ele se encontra sem um tostão. Para sobreviver (e se desenvolver musicalmente) Robert se oferece como aprendiz de Vyvian Ayrs, um brilhante compositor belga que não produz há anos graças a uma doença que rouba sua vitalidade. Como é de se esperar, Ayrs é rabugento e flerta com a desonestidade, e cabe a Robert usar sua capacidade de manipulação – sua característica que mais o define – com o velho músico. Robert é adorável, aquele tipo de personagem com quem não gostaríamos de conviver (ler nota sobre manipulação) mas de quem gostamos das vitórias e sorvemos lágrimas com as derrotas. Um manipulative bastard clássico.
Louisa Rey é uma jornalista de revistas de fofocas nos anos 70, vivendo entre cantadas dos entrevistados e matérias sem sentido sobre as refeições das celebridades. Filha de um correspondente de guerra aclamado, Louisa quer realmente fazer a diferença no mundo – o que é complicado quando suas pautas são todas sobre o novo corte de cabelo de uma atriz de sitcoms. Depois de ficar presa no elevador com um cientista da base nuclear local, a oportunidade aparece: repentinamente, Louisa se vê envolvida com conspirações governamentais, assassinos de aluguel e velhos amigos.
O representante de nossos tempos, Timoty Cavendish é o editor de um recente sucesso, “Knuckle sandwich”, as memórias de um criminoso de pavio curto e pouca habilidade com as palavras. O livro ganha notoriedade e tudo é maravilhoso para o antes falido Timoty, mas há só um problema: os irmãos de seu autor best-seller (que voltou para a prisão) estão em seu encalço, querendo sua parte nas vendas.
Ah, eu precisaria de um livro inteiro para falar de Somni. Em um lugar chamado Nea So Corpros da Ásia futurística, Somni é uma fabricant, ou seja, uma pessoa gerada em laboratório para um trabalho específico – nesse caso, servir as mesas no Papa Song, uma franquia de arcos dourados que me lembra uma tal lanchonete moderna (até mesmo no tratamento de seus empregados). A Somni e a suas “irmãs” (todas as fabricants são aparentadas) é prometido, depois de doze anos, uma mágica aposentadoria na linda ilha do Hawaii, mas algo sai errado na programação genética de nossa garçonete. Nea So Corpros é um dos mundos distópicos mais maravilhosos e bem construídos que já vi, e confesso que acelerei a leitura algumas vezes para chegar logo em Somni – as outras histórias são maravilhosas, mas há algo de excepcional aqui. O nível de detalhamento (presente em aspectos pequenos porém importantes, como expressões idiomáticas) é tremendo, me fazendo desejar que David Mitchell possuísse o detestável hábito de transformar livros únicos em enormes séries.
Finalmente chegamos a Zachry, habitante de um mundo pós-Somni completamente destruído, onde os poucos humanos restantes vivem em ilhas, voltando a crenças e hábitos tribais – apenas os chamados “Prescients” mantiveram a tecnologia da época de Nea So Corpros.
Depois dessa longuíssima sinopse – não havia como não sê-lo – vamos aos comentários. Já chorei algumas vezes depois de terminar um livro, mas isso ainda é exclusivo daqueles muito bons – o que foi o caso. Como assim, David Mitchell? Cadê o pozinho mágico para obras maravilhosas?
Começando pela narrativa: um grande problema de livros narrados por diferentes pessoas é que raramente o autor se desfaz do seu próprio estilo entre capítulos. O leitor de Cloud Atlas não tem essa reclamação: é possível desconfiar até mesmo que foram feitos por diferentes pessoas. Zachry é quase ilegível e sem gramática, Robert polido e poético, Somny cheia de expressões criativas de seu novo mundo, Timoty cheio de referências e Louisa no melhor estilo policial – sim, há alteração até mesmo nos gêneros literários. Ainda que todos esses personagens vivessem na mesma linha de tempo e espaço (e viveram, de certa forma) seria impossível confundir um com o outro.
Ou David Mitchell é um gênio ainda não reconhecido ou rascunhou Cloud Atlas a sua vida inteira: o nível de complexidade dos dois mundos futurísticos é imenso. Eu voltava para ler trechos de Somni, aflita, com medo de ter perdido algum detalhe importante – e geralmente esse medo era justificado: de forma natural, Mitchell inseriu os aspectos para nós desconhecidos. A corporcracy (corporaçãocracia, talvez?) é ao mesmo tempo tão conhecida e tão diferente, um mundo fascinante que quero ter para mim e me faz ter vontade de voltar a escrever fã-fics (e isso é muita, mas muita coisa).
Depois de vermos todos os personagens em ordem cronológica, voltamos, na ordem inversa, os acontecimentos com ganchos perfeitos entre si. Uma das frases da capa (aliás, não me conformo de ter a edição do filme, isso precisa ser corrigido) acaba que resume Cloud Atlas: tudo é conectado. É egoísta e irresponsável pensar que nossas ações vão dizer respeito só a nós mesmos, tudo ecoa na eternidade. Me odeio por tratar uma questão de cunho individual dessa maneira tão ferrenha e determinista, mas agir como uma ilha e acreditar pertencer somente a si mesmo só pode derivar de algum tipo de cegueira bem peculiar.
Sou uma leitora em segunda língua preguiçosa, confesso: só a curiosidade extrema me faz procurar uma palavra em inglês no dicionário. Com Cloud Atlas, porém, nem o auxilio do Cambridge me salvou: alguns trechos precisei ler cinco, seis vezes para entendimento completo. Prevejo que o tradutor para o português terá sérios problemas na tradução de expressões, neologismos e gramáticas diferentes. Isto é, se é que haverá: aparentemente, mesmo com o lançamento do filme, nenhuma editora se interessou nas terras tupiniquins. Cruzo meus dedos para que isso aconteça em breve – Cloud Atlas é um daqueles livros que me fazem ter vontade de não descansar um segundo até que cada ser humano no planeta se maravilhe também.
Publicada originalmente em distopicamente.blogspot.com