Lucas 21/09/2020
Os nós-cegos, os espelhos e a decadência: Um romance histórico em sua essência, mas diferente de todos os outros
"Em que momento o Peru tinha se fodido?". É este o (conhecido) mote condutor do primeiro parágrafo de Conversa no Catedral (1969), e que acaba sendo o cerne de toda a obra: uma busca em encontrar respostas temporais para quando e como a República do Peru e os personagens principais do livro tiveram suas existências desviadas de uma vida estável e adequada. E, seja no sentido literal ou por meio de ficção, é desafiador construir uma história que rememora o passado em busca de respostas plausíveis a este "desvio".
Sorte do leitor que o peruano Mario Vargas Llosa (1936-) assume esta missão, e com a categoria que o fez ser laureado com o prêmio Nobel de Literatura em 2010 (ele é um dos seis latino-americanos já vencedores do prêmio, o único ainda vivo), tem-se Conversa no Catedral, um dos seus melhores livros, fruto de cerca de três anos de trabalho.
Seja por este rótulo de escritor reconhecido mundialmente, seja pelo fato de já ter tentado ser presidente do seu país (perdeu as eleições em 1990 para Alberto Fujimori (1938-), que depois estabeleceu um regime autoritário), Llosa é o mais capacitado não só para montar uma narrativa tão peculiarmente maravilhosa, como também de olhar para o seu país de origem, o Peru.
Poucas nações no mundo, não apenas na América Latina, possuem uma diversidade cultural tão vasta quanto o país andino. Sede do Império Inca (cuja capital era a atual Cusco), quando os espanhóis ali chegaram em 1532 não encontraram índios aparentemente desamparados e que "precisavam" ser catequizados, mas sim avistaram uma sociedade organizada e monumental, com cerca de 14 milhões de habitantes, que ocupava todo o atual Peru e partes do que se entende hoje como Venezuela, Equador, Chile e Bolívia. Os incas eram excelentes agricultores, capazes de irrigar áreas agricultáveis da Cordilheira dos Andes, com mecanismos próprios muito avançados para a época.
Conversa no Catedral não se debruça necessariamente sobre estas questões de colonização, mas sim sobre as condições resultantes delas, que são em parte responsáveis pelas frequentes brigas políticas internas dos países da América Latina, que fazem parte da história da região e que se acentuaram no século XX. A ditadura do general Manuel Apolinário Odría (1896-1974), que durou de 1948 a 1956, é o pano de fundo narrativo da obra.
Se Mario Vargas Llosa é preciso em fazer esse detalhamento da ditadura de Odría (que certamente exerceu forte influência sobre o autor, então menino e posteriormente adulto), ele é criativo na mesma medida em inserir na parte ficcional da obra uma gama de personagens que reflete o povo peruano daqueles anos. Em parte preocupado com o regime ditatorial (apoiado por grandes empresários e pelos Estados Unidos) e também preocupado com movimentos de esquerda (como a Aliança Popular Revolucionária Americana – APRA), o povo peruano era "massa de manobra" para a consolidação do poder ditatorial. Llosa muito destaca este mecanismo do regime, assim como a sua reiterada corrupção (mais até do que torturas ou coações, a corrupção é o principal elemento de ligação entre inúmeros personagens).
Aliás, são dezenas de personagens, que estabelecem relações entre si, e outros que, num primeiro momento não aparentam nenhuma relação, mas que, num estalar de dedos, a narrativa trata de estabelecer uma ligação até próxima demais muitas vezes (são geniais estes momentos de "elucidação"). Mas, sucintamente, a parte ficcional de Conversa no Catedral gira em torno de três personagens: Santiago Zavala, o "Zavalita", protagonista, Ambrosio Pardo (motorista) e Amalia Cerda (empregada doméstica).
Contudo, nada é sucinto em Conversa no Catedral, nem tanto pelo tamanho (são quase 600 páginas na excelente edição da Editora Alfaguara) mas principalmente pela forma fragmentada que a narrativa é construída, que faz a obra ser monumental em termos estruturais. São vários núcleos com vários personagens e "objetivos" diferentes dentro do escopo da ficção ou da descrição da sociedade peruana. Estes núcleos não são tratados individual e simetricamente: eles se misturam, às vezes numa mesma frase, muitas vezes num mesmo parágrafo ou diálogo e assim por diante.
A chamada "narrativa fragmentada" ou termos similares que aparecem quando se busca uma opinião alheia sobre Conversa no Catedral é o grande baluarte da obra, aquilo que o leitor não conseguirá esquecer, especialmente se este for o primeiro contato com Mario Vargas Llosa. Estas análises falam em "misturas temporais", "passado e presente num mesmo parágrafo", "linguagem atropelada" e outros termos que, num primeiro momento podem deixar o leitor previamente desconfiado, especialmente se ele for excessivamente racional (como este que escreve...).
Mas poucas coisas são tão prazerosas neste universo de experiências literárias do que a quebra de um paradigma pré-concebido ou de um ceticismo que se revela infundado. Conversa no Catedral destrói estes pré-conceitos de uma forma mágica. Indo direto ao ponto, a narrativa de Llosa é realmente tudo isso que foi citado no parágrafo anterior, mas, longe de causar confusão, oferece uma experiência única de leitura. É como se a narrativa seguisse uma linha entendível, calma, de repente há alguma menção ao passado, alguma manifestação de um personagem que não estava na "cena", mas que possui sentido tanto para ela quanto para a retomada do contexto em que este personagem estava inserido. É um recurso muito usado em séries ou filmes, mas que o autor sabe trabalhar muito bem em termos literários, como aqui se constata. Passado e presente se misturam e não causam a menor confusão, mas sim encantam indelevelmente.
O próprio ponto de partida de tudo que será contado pelas linhas da obra, que é o encontro de Santiago Zavala com Ambrosio, que era motorista do seu pai, é o exemplo mais perfeito disso. Zavalita se encontra com Ambrosio aproximadamente uma década após terem se visto pela última vez. Como tinham muito o que conversar, resolvem ir para o Catedral (daí o título, no masculino), um bar de categoria discutível situado em Lima. Isto acontece no primeiro capítulo, mas o teor e a totalidade da conversa entre os dois não é revelado ali, mas sim aos poucos, durante praticamente todo o restante do livro. Quando o leitor menos esperar, haverá alguma transcrição da tal conversa que abre a narrativa, o que confere a ela uma genialidade bem peculiar.
Esta criatividade de Llosa ajuda a tecer um painel preciso da sociedade peruana dos anos 50 até o final dos anos 60. Ela se consolida na peculiar construção narrativa, que traz elementos históricos e sociais da ditadura de Odría e seus pares (como o controverso Cayo Bermúdez, baseado em Alejandro Esparza Zañartu (1901-1985), que foi ministro do interior durante o regime) e todo um emaranhado de jogos políticos e acordos obscuros entre membros do regime e alguns elementos da classe alta; o papel da repressão e suas variações no processo de dominação; o aspecto revolucionário/esquerdista, presente nas universidades; a aleatoriedade da vida, que nos joga para lá e para cá...
O painel político e social que Llosa pinta se confunde com a ficção de suas linhas, baseadas naquela sensação colorida, cheirosa e nostálgica que é a essência da literatura latino-americana da segunda metade do século XX (o estilo do autor aqui nada tem de realismo mágico, contudo). Santiago e a relação com seus pais e irmãos é o principal símbolo disso: seu pai, Don Fermín Zavala é uma das principais "pontes" entre a ficção e a realidade peruana exaltada no romance, como bem sucedido empresário com interesses obscuros (e vários mistérios); seus irmãos, o pretensioso e inicialmente responsável Chispas e a, inicialmente esnobe, Teté, ilustram a evolução dos indivíduos, o amadurecimento natural que a vida ocasiona; e Dona Zoila, sua mãe, simboliza o espírito de "matrona" superprotetora, cujo apego exagerado nem sempre é saudável.
De uma forma geral, é o núcleo familiar de Zavalita que é o "centro" do emaranhado labiríntico narrativo de Conversa no Catedral. Este círculo é o ponto de partida de outros personagens marcantes, como os já citados Amalia (a empregada cuja história é marcada por dificuldades) e Ambrosio (de origem humilde e com algumas posturas polêmicas). Acaba este círculo também sendo o grande destaque do elemento "novela mexicana" presente na obra, marcado também pelas menções a amores não resolvidos, amores lascivos, cantoras em declínio, prostitutas que já tiveram dias melhores... É uma das marcas do romance: tudo é mostrado em seu auge e em sua decadência.
É temeroso descrever todos os núcleos narrativos: eles se confundem, tem vida própria, parecem procurar outros para tornar a narrativa presa, não num sentido linear, mas com vários nós cegamente amarrados. Nenhum personagem isoladamente é o fio condutor de tudo, apesar de ser com Santiago Zavala que o leitor poderá se identificar mais, não necessariamente por ser o protagonista. E, outro ponto, Zavalita não faz rigorosamente nada para ter esse posto, mas sim o seu olhar para o que lhe rodeia, que vai se alterando com as experiências que a vida lega-lhe. Esta é uma conquista do narrador, onisciente e impessoal, mas que conversa com os personagens para reforçar ou esclarecer uma ideia.
Conversa no Catedral é, numa tentativa deficiente de rotulá-lo em poucas palavras, um romance de espelhos. Zavalita vê em Ambrosio, guardadas as devidas proporções, um espelho de si próprio, uma repetição de enredos marcados por pequenas ascensões, alguns traumas não resolvidos e decisões erradas. O contexto que é retratado do Peru faz do país um espelho dos seus vizinhos sul-americanos. A conversa dos protagonistas, fonte principal de todo o romance, traz esta impressão e acaba por revelar ao leitor algo muito maior e mais complexo, com vieses sociais e históricos: é todo um país descrito em linhas vivas, com personagens inesquecíveis retratados sem a preocupação com finais felizes.