Ricardo Silas 28/05/2014
Ecce Homo: ou Hitch-22
O célebre e polêmico jornalista Christopher Hitchens, autor do best-seller "Deus não é grande", mais uma vez atingiu o suprassumo da aptidão essencialmente rara de representar um diálogo íntimo e amistoso ao extremo com seus leitores. Quero dizer com isso que, embora "Hitch-22" seja uma autobiografia apetitosa, ela abarca pitadas reveladoras a respeito da efervescência juvenil do Hitchens. Acho que, para fazer perdurar a relação positiva que senti "conversando" com os pensamentos eternizados deste nobre homem, sinto que eu não o incomodaria caso ousasse chamá-lo de Chris ou Hitch (uma sutil alusão a um dos capítulos do livro, à guisa de esclarecimentos).
"O que seria a maior das desgraças para você?"
Eu nunca pensara a respeito. Tive a chance única de experimentar a profunda tragédia de perscrutar os recônditos da minha existência antes de comungar com a resposta do Hitchens: perder a memória. Há, caros leitores, algo de mais assombroso do que perder o único receptáculo de experiências que representa quem somos? Todo nosso pretérito, expectativas futuras, um arcabouço transbordante e quase palatável de tão efêmero que é, estão em nossas memórias.
Não é aterradora a sensação de perder a si mesmo?
O primeiro capítulo do livro expõe a tragédia ocorrida com Yvonne, mãe do Hitchens, que fugiu para a Grécia com seu amante para, posteriormente, cometer suicídio em um quarto de Hotel. E o "Comandante", militar fleumático, protagonista do segundo capítulo que Hitchens relata com notável insuficiência fraternal, contribuiu, de certa forma, na construção do caráter efervescente que constituia o Hitchens em sua juventude, principalmente após o suicídio da mãe. Qualquer um que tenha acompanhado o trabalho ferino do Hitchens é capaz de concluir o quanto ele causou barulhos estridentes, principalmente na comunidade religiosa. Arrisco dizer que foram essas desagradáveis experiências de seu passado que engendraram alguns pilares imponentes deste nobre autor.
Acompanhar as mutações e turbulências do amadurecimento político do autor, dentro dos fragmentos históricos do seu passado, é inspirador. Sua inserção ao grupo de socialistas internacionais fomentou encontros com mentes que pensavam política com espírito revolucionário. Isso impregnou notavelmente a intolerância mordaz que foi parte do seu arsenal ativo contra o estabelecimento de governos teocráticos que poluíam desenfreadamente as sociedades livres do Oriente Médio contemporâneo (sobre as quais não ouso me aprofundar). Seu repúdio se estendeu também aos regimes totalitários de Salazar, Hitler, Stalin, e muitos outros, que conspurcaram todo o mosaico da história humana.
Toda essa euforia não suplantou o forte apreço que Hitchens teve pela arte, literatura, música, prazeres que são refrigérios para a estabilidade moral de qualquer indivíduo. Em seu livro póstumo "Últimas palavras" Hitchens reitera o impacto cósmico que lhe acometeu seu ser quando conheceu "DULCE ET DECORUM EST", poema de guerra, de Wilfred Owen. Sheakspeare, Dostoiévski, Orwell, Sócrates, dentre inúmeros outros, foram fontes perenes de inspiração que teceram o estofo ético e erudito da sua carreira como jornalista, debatedor impetuoso, e homem.
São tantas lições de vida encontradas deixadas pelo seu legado político, ateísta e fraternal, que não compete a mim o descuido de ser desajeitadamente seletivo ao expor alguns e omitir outros. Sei que perco muito tempo em minhas resenhas enlevando Christopher Hitchens para pessoas que podem divergem quanto ao modus operandis empregado por ele. Porém, é extremamente difícil conter a satisfação e admiração por alguém que fornece substratos plausíveis e sazonais em favor do pensamento cético em contra-ataque ao fundamentalismo estupidificante que subsiste aos borbotões mundo afora.
O amargo encontro com sua morte precoce que ensejou esta obra, só será lançado à luz se vocês a lerem.
Meu herói. Nada mais.